Cerca de 1 a 10 milhões de indivíduos
é a quantidade estimada de nativos que habitavam o território brasileiro quando
os portugueses estabeleceram seu domínio sobre essas terras. Durante os
primeiros cem anos de colonização, nenhum direito foi assegurado a esses povos
considerados sem alma, legitimamente dizimados por guerras, doenças e políticas
de assimilação, até que finalmente fosse iniciado um processo de proteção e
identificação dessas comunidades como titulares de direitos. A criação do
Serviço de Proteção ao Índio em 1910 foi o marco que deu início ao
desenvolvimento de legislações que incluíssem os povos originários, como o
direito à terra, positivado na Constituição de 1934. A partir desse
reconhecimento mínimo, movimentos indígenas ganharam ainda mais força e
passaram a buscar participação ativa nos parlamentos e na assembleia
constituinte até que, por fim, fosse reconhecida na Constituição Federal de
1988 a condição multicultural e pluriétnica desses sujeitos e o seu direito de
permanecer como tal. Conhecer suas necessidades particulares e saber que é
possível exigi-las é o que Boaventura de Souza Santos vai defender como
indispensável para a transformação do direito em ferramenta de luta.
De acordo com o pesquisador português,
o pensamento moderno possui um caráter abissal que divide a realidade social em
dois universos distintos. Nesse sentido, ele afirma ser necessário a
desconstrução desse caráter único dos conhecimentos tidos como válidos,
científicos e universais, mediante o estímulo de uma educação intercultural
crítica. A capacitação jurídica, ou seja, o alargamento do número de sujeitos
capazes de interpretar a ciência jurídica e solucionar conflitos quando a
resposta na justiça oficial é inacessível, é o instrumento que possibilitará
emergir o pensamento “pós-abissal”, mobilizador de perspectivas emergentes e
potencializador dos direitos não-hegemônicos. No entanto, a atual conjuntura,
por ainda não ter experenciado essa revolução epistemológica, acaba sendo
limitada pelo o que o autor vai chamar de “morosidade ativa” da justiça, logo,
a intencional “não decisão” dos tribunais, de escolher não decretar uma
sentença e, para isso, utilizar de todos os mecanismos possíveis para atrasar a
resolução do problema.
Esse uso de escusas protelatórias em
processos que envolvem conflito de interesses pode ser facilmente observado no
caso que discute o destino das terras indígenas em face do “marco temporal”, em
2021. O pedido de reintegração de posse, que tramita no Supremo Tribunal
Federal sob Recurso Extraordinário de repercussão geral - (RE-RG) 1.017.365 -,
foi movido pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina contra a Funai e o
povo Xokleng. Por se tratar de uma decisão que será referência para todos os
casos envolvendo terras indígenas e, além disso, dialoga com os interesses da
bancada ruralista, está em debate o reconhecimento ou a negação do direito mais
fundamental das comunidades nativas: o acesso à terra. O julgamento pelo STF,
que já havia sido adiado, foi suspenso até que o magistrado decida emitir seu
voto, que, na prática, não possui prazo para ser devolvido. Nesse sentido, fica
evidente a ânsia dos responsáveis por encaminhar uma decisão em escapar de um
possível fim, especialmente quando a questão compreende uma problemática tão
antiga e particular da realidade brasileira.
Recusar uma resolução óbvia que saia
em defesa de um direito originário, anterior ao próprio Estado, demonstra que
perspectivas excludentes de atropelamento dos direitos fundamentais estão
conquistando cada vez mais espaço político e jurídico. O silencio que favorece
o agronegócio também legaliza usurpações, fomenta invasões, põe em risco a
preservação ambiental e climática e traz de volta desigualdades que passaram
por séculos de luta para serem superadas. Isso só confirma a urgência de
transformar a morosidade dos tribunais em um modo de afirmação do discurso não hegemônico
e enfrentamento democrático para, finalmente, atingir os direitos básicos
daqueles ainda alheios ao saber jurídico.
Giovanna
Cardozo Silva - Turma XXXVIII - matutino
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