O filme “Ponto de mutação”, dirigido pelo austríaco Bernt Amadeus Capra, leva o telespectador à reflexão, por meio do embate/discussão das personagens, acerca da visão cartesiana do mundo, que leva os indivíduos, coletiva e individualmente, a pensar nas infinitas situações e variáveis que regem o planeta como engrenagens, partes de uma máquina maior, agindo em conformidade com a “função” do todo, que, em tese seria “fazer o mundo funcionar”, ou seja, tudo é tratado como peça, metaforicamente, de um imenso relógio, que, à menor falha de qualquer uma de suas peças, se sujeita ao mal funcionamento, ao mesmo modo que, substituir a peça falha, em teoria, eliminaria todo o problema explicitado no andar dos ponteiros.
Um dos problemas do racionalismo cartesiano é tratar a imensidão imensurável dos fatos como passíveis de serem compreendidos em particular para deduzir-se, então, a totalidade complexa. Humanamente, é impossível compilar e muito menos entender todos os fatos que regem as ações humanas, sejam elas as menores possíveis, tendo em vista que a capacidade individual e coletiva de entendimento está supraposicionada perante à complexidade do universo e sujeita, instintivamente e racionalmente à abstrações, abstrações estas necessárias, mesmo que paradoxalmente, para o entendimento das ações e acontecimentos humanos.
Analogamente ao problema da negação do abstrato, do não “racionalizável”, Descartes também tratava o mundo como algo previsível, algo mecânico, tratava as pessoas e relações pessoais como um sistema biológico pronto, no qual cada órgão possui sempre o mesmo papel, realiza sempre as mesmas funções e pode ser pensado individualmente, analisado por si só, tendo em vista que “o coração apenas pulsa e se algo está errado na circulação sanguínea, com toda a razão, o problema seria o pulsar de um coração defeituoso”, sem levar em conta que o problema circulatório e até mesmo as falhas nas sístoles e diástoles podem ser fruto de inúmeros outros fatores, como alta ingestão de sódio ou até mesmo falta de exercícios físicos, estando o coração e o sanar do problema submissos à mudanças de hábitos cotidianos de exercício e/ou alimentação e não ao transplante do órgão.
Na contemporaneidade, apesar de Descartes ter publicado suas obras, sobretudo o escrito “Discurso do método” há séculos, o racionalismo cartesiano ainda é muito presente, muito enraizado no íntimo humano, exemplificando-se, por exemplo, na maior crise humanitária do século XX, a ascensão de regimes autoritários na Europa, os chamados regimes fascistas.
O fascismo surge e cresce pautado em um utilitarismo sofista, regado a altas doses de racionalismo contrutivista, que culpava específicos e superficiais grupos e acontecimentos pelos problemas e pelas mazelas sociais na qual se encontrava imerso o território europeu pós primeira grande guerra. Porém, é irracional pensar que a “culpa” pela queda de produção, pela fome, miséria, diminuição de poder e até mesmo a insatisfação popular fossem fruto dos resultados da guerra, dos judeus ou de qualquer outro fator em específico, isolado. Seria racional refletir que a situação sociopolítica da época era fruto de inúmeros acontecimentos, tão complexos e emaranhados que seriam impossíveis de serem entendidos por inteiro e muito mais difíceis de serem sanados pelas vias apontadas pelos fascistas. Os problemas do continente foram resultado de confrontos armados, estes causados por uma forte crise passada, que fora gerada pela superprodução e subconsumo de uma sociedade recém industrializada, juntamente a ascensão de disputas internas e externas por poder, busca pela dominação mundial, mudanças estruturais e intelectuais geradas por um capitalismo em ascensão, sendo todos estes fatores gerados por mais infinitos fatores que por sua vez foram gerados por incontáveis outros fatores (ad eternum), que nunca serão totalmente desvendados e são impossíveis de se generalizar e simplificar, como fizeram Hitler e Mussolini, que sintetizaram as adversidades e colocaram-nas, à força, em “potes” seletos, como o do comunismo ou do judaísmo, empurrando ao povo uma falsa ilusão de simplicidade para se acabar com a forte depressão socioeconômica, para serem “great again”.
Atualmente o extremismo fascista ainda é forte, ainda impera, mesmo após os devastadores saldos da grande guerra, isso deve-se, dentre outros motivos, pela continuidade do endeusamento ao método de Descartes, que simplifica o mundo e o alquimiza em uma mera máquina, que abre espaço para análises vistas e entendidas, em um primeiro momento como profundas, mas frente a imensidão dos acontecimentos estão na mais extrema superfície do saber, dando espaço para extremismos falsamente racionalizados, que colocam, por exemplo, a culpa das situações de um país na falta de muros em fronteiras ou na homoafetividade, que sintetizam a máquina do mundo não como faz Drumond em seu poema homônimo “A máquina do mundo”, caracterizando-a pela sua impossível compreensão de uma entreaberta fresta de luz de saber jamais desvendada, mas sim em focos pontuais de falsas percepções, devotadas por intermédio de paixões incertas e visões estereotipadas geradas pela falsa certeza de um mundo que na verdade é muito incerto.
Octavio Deiroz Neto - 1º ano noturno