A evolução do ordenamento jurídico assim como da sua aplicabilidade foi, sem dúvida, significativa. A prática do Direito atual, aquele que conhecemos e estudamos, no entanto, não se desvinculou completamente de certas características consideradas típicas às ditas sociedades primitivas, pautadas por uma menor diferenciação social. Uma vez complexa, era pressuposto que na nossa sociedade estivesse presente a solidariedade orgânica, atuando em todos os aspectos da vida social, sobretudo no universo do Direito Penal e na aplicação de penas aos indivíduos que apresentassem comportamentos criminosos.
Alguns resquícios, e não são poucos, das sociedades arcaicas deixam claro, frequentemente, que no meio social moderno ainda se faz presente a solidariedade mecânica, algo que certamente surpreenderia Durkheim, cujas ideias, elaboradas há mais de um século, ainda podem ser identificadas na complexidade do século XXI e na passionalidade da maior parte, salvo raríssimas exceções, dos indivíduos deste período.
Guiadas pelas paixões, as pessoas analisam certos acontecimentos do mundo de forma muito mais inflamada e desprovida do mínimo de pensamento lógico e racional. Percebe-se que apesar dos avanços, o social não se guia somente pela razão, mas é influenciado pela religião e por emoções, o que torna um sentimento restrito de desaprovação diante de um crime, por exemplo, algo comum à coletividade. Dessa forma, as paixões privadas de cada indivíduo somam-se, constituindo um todo: a consciência coletiva, guiada pelas paixões públicas.
Para exemplificar a atuação das paixões privadas no cotidiano das pessoas, pode-se citar o sentimento de desaprovação diante da homossexualidade e de alguns direitos que os casais homoafetivos têm conquistado em diversos países do mundo, como o casamento e a adoção de crianças. Embora muitos não queiram ser considerados preconceituosos e neguem, muitas vezes, tal reprovação, ela está presente no seu íntimo e é um reflexo, principalmente, de princípios religiosos enraizados na formação dessas pessoas e na sua visão de mundo.
O problema, porém, reside no fato de que as paixões privadas, que por si só já constituem uma importante problemática, quando estão presentes nas ideias de uma coletividade e somadas, concebem as paixões públicas. Um preconceito que uma pessoa possuía torna-se algo repudiado por uma maioria passional permeada pela solidariedade mecânica advinda das semelhanças.
As paixões públicas, por sua vez, podem ser percebidas na reação da sociedade diante de crimes hediondos. Munidas de uma cólera geral e baseadas em preceitos religiosos, as pessoas reivindicam uma reação penal com o intuito de defesa - destruição do mal e conservação em face do perigo - e expiação. Isso explica, por exemplo, a sua aversão aos familiares e amigos do criminoso, os quais se confundem, equivocadamente, no universo do crime e, muitas vezes, têm até de mudar de casa, devido às ameaças e aos constrangimentos que sofrem. Diante disso, Émile Durkheim, em sua obra A Divisão Social do Trabalho, já indicava que a pena é aplicada de acordo com a maneira com que o delito é sentido, o que nem sempre é proporcional ao mal causado, pois não é compatível com seu impacto social.
Neste sentido, é difícil de acreditar que um assunto publicado em 1893 ainda seja tão atual, que em situações sérias que demandam uma análise mais cautelosa as pessoas ainda se deixam guiar pela religiosidade e, consequentemente, pela passionalidade em detrimento da razão. Isso explica o fato de o Direito Penal ser, ainda hoje, estacionário, pouco permeável a mudanças e nos faz pensar que, em alguns aspectos, 2011 não está tão distante de 1893.