17 de agosto de 2020. Dia em que
uma menina de dez anos, após ser estuprada durante quatro terríveis e
traumáticos anos por seu tio, passou por um procedimento para interromper a
gravidez gerada pelo abuso. A permissão para o aborto foi concedida pelo juiz
Antônio Moreira Fernandes, baseada em fatores, tanto legais, quanto sociais. Em
relação à questão legal, o Decreto-Lei 2848/1940, do Código Penal, permite o
aborto em três condições, sendo que duas delas eram apresentadas pela menina:
gravidez resultante de estupro, somado ao fato de causar perigo à vida da
gestante. Ambos fatores são inquestionáveis, devido ao relato concedido pela
menina sobre o abuso que sofreu e, também, à estrutura corpórea de uma criança
de 10 anos não ser suficiente para suportar uma gravidez. Partindo para o
âmbito social, é indubitável o fato de uma menina não ter condições
psicológicas para criar uma criança. Ela ainda é uma. Tendo esmagadora parcela
da infância roubada por um abusador, a quantidade restante deve ser, apesar da
consequência gerada pelo trauma, conservada e usufruída de modo inocente, puro.
De modo infantil.
Apesar dessas válidas
considerações, dia 16 de agosto de 2020, manifestantes religiosos fizeram
protestos para que o aborto não fosse realizado. Esse grupo se baseou em
crenças religiosas com o argumento de que a vida é uma dádiva divina e ninguém
tinha o direito de cessá-la. Assim, agiram de acordo com seus valores,
independentemente da reação da sociedade e, no caso em questão, da
constituição. Partido para m âmbito sociológico, o protesto regido por valores
cristãos seria definido, por Max Weber, como ação racional com relação a um
valor.
O sociólogo alemão construiu sua
teoria a partir de uma sociologia compreensiva, isto é, busca explicar o que
motivou o indivíduo a produzir tal ação, qual seu objetivo. Em sua obra, "Metodologia das ciências sociais", explicita tal compreensão ao afirmar querer descobrir “ (...) o conhecimento do
significado daquilo que é o ‘objeto’ da aspiração”. Logo, para ele, o sentido
para ações sociais serem realizadas depende da cultura, que engloba valores,
moral, determinações econômicas, política, poder e dominação. Nesse ponto, sua perspectiva distancia-se da
marxista, pois, enquanto para Marx somente a força econômica regia a história,
Weber inclui outros fatores determinantes. Além de atribuir sentido para as
ações sociais, o sociólogo as classifica em quatro tipos: ação racional com
relação a um objetivo; ação racional com relação a um valor; ação afetiva ou
emocional e, finalmente, ação tradicional.
De modo que a ação racional com
relação a um valor se defina como aquela em que seu ator aceita os riscos em
relação aos seus atos, sendo fielmente regido por seus valores e ideias, é
possível de ser feito um paralelo entre ela e o protesto religioso. Apesar de os
manifestantes saberem que seriam afastados por seguranças, não deixaram de
realizar seu protesto contra o aborto, devido aos seus valores cristãos.
Diante desse panorama, é,
possível, ainda fazendo referência à sociologia weberiana, traçar o tipo ideal
da sociedade brasileira. Segundo o sociólogo, o “tipo ideal”-que tende à ser
descartado-representa uma ferramenta metodológica para análise, não correspondendo,
necessariamente a algo que “deve ser”, mas o objetivamente possível, sendo uma
forma de organizar a complexidade caótica do real, a partir da comparação entre
os fatos e o tipo ideal. Após o episódio citado, envolvendo estupros e
manifestações religiosas contrárias ao aborto, e somado a tantos outros
análogos e nefastos na contemporaneidade, Weber consideraria o tipo ideal da
sociedade brasileira como, entre outras características que não serão debatidas
nesse texto, cristã e machista.
Todo
esse cenário é extremamente desanimador. Quando o homem decide realizar sua
ação racional com relação a um valor, não deve prejudicar o seu entorno. Sua
convicção é pessoal e, justamente por isso, não deve reger a vida outros
indivíduos, a não ser a dele. No caso mortificante da menina de dez anos, a
convicção religiosa dos manifestantes e, também, machista -por querer decidir
sobre o corpo da mulher- iria prejudicar a vida de duas crianças, caso fosse
aceita. Agora, suscita-se a última indagação: Se a vida, segundo os
protestantes, é uma dádiva divina, por que se sentem no direito de prejudicar duas?
Ana Marcela Nahas Cardili- 1° ano Direito Matutino