"Também hoje, portanto, não é unívoca por toda parte a delimitação das esferas do direito público e do privado. Muito menos ainda aconteceu isso no passado. Pode até faltar completamente a possibilidade de uma distinção. Isso acontece quando todo direito e todas as competências, especialmente todos os poderes de mando, têm o caráter de privilégios pessoais (na maioria das vezes, tratando-se do chefe do Estado), denominados 'prerrogativas'. Nesse caso, a faculdade de pronunciar o direito em determinada causa ou de chamar alguém às armas ou de exigir sua obediência noutras situações é tanto um direito subjetivo 'adquirido' e eventualmente também objeto de um acordo jurídico, de uma alienação ou de uma transmissão hereditária, quando, por exemplo, a faculdade de aproveitar determinado pedaço de terra. Nesse caso, o poder político, do ponto de vista jurídico, não tem estrutura de instituição, mas apresenta-se na forma de relações associativas e compromissos concretos dos diversos detentores e pretendentes de faculdades de mando subjetivas. Quanto à sua natureza, o poder de mando político, o do pai de família, o do senhor territorial ou o do senhor de servos não diferem neste caso : trata-se da situação de 'patrimonialismo'. Conforme a extenção, em cada caso, dessa estrutura do direito - e ela nunca foi realizada até as últimas conseqüências - tudo o que corresponde a nosso direito 'público' é juridicamente objeto de um direito subjetivo de detentores de poder concretos, exatamente como uma pretensão jurídica privada".
Na obra "Wirtschaft Und Gesellschaft" ( Economia E Sociedade ), no capítulo VII, "Sociologia Do Direito", particularmente no parágrafo primeiro, "A Diferenciação Das Áreas Jurídicas Objetivas", Max Weber observa, quando discorre acerca das fronteiras entre o Direito Público e o Direito Privado, que, não raro, ocorre a privatização da esfera pública. A obra de Weber, todavia, ainda que publicada em 1922, tem um tom de contemporaneidade. Tal tom manifesta-se com absoluta clareza na permeabilidade, por vezes constatada na história dos mais variados Estados, entre as fronteiras do público e do privado. Ao processo de dissolução destes limites, bem como o exercício de um poder paternal, através dos quais se considera patrimônio privado o público, dá-se o nome de patrimonialismo. Comum na Antigüidade Oriental, a exemplo dos Antigos Impérios Egípcio, Assírio, Caldeu, Persa, Hindu e Chinês, o patrimonialismo, entretanto, não se restringiu a eles : foi praticado entre os bárbaros germânicos e, posteriormente nas diversas monarquias do "Ancien Régime". É, aliás, durante este último período, que a privatização da esfera pública encontra expressão na máxima de Luís XIV : "L'État c'est moi". A França, porém, não foi o único Estado europeu a suportar o jugo da indiferenciação entre o público e o privado. Também a Inglaterra o suportou. Presente sobremaneira em Portugal, o patrimonialismo passou a integrar de forma marcante o funcionalismo público no Brasil. Prova suficiente foram as célebres críticas de Gregório de Matos no Brasil Colônia. A confusão entre o público e o privado permaneceu na República. Utilizaram-se dela os coronéis do café e todas as gerações de funcionários públicos seguintes a eles. O patrimonialismo ainda aflora na sociedade e governo brasileiros. A eliminação da separação entre o público e o privado, a exemplo do texto intróito, continua sobrevivendo. Para Weber, as suas origens, todavía, são arcaicas : "O portador original de toda 'administração' é a autoridade
doméstica. Na ausência de limitações que primitivamente a caracterizam, não há direitos subjetivos dos submetidos ao poder perante o chefe da família, e, quanto ao comportamento deste diante daqueles, as normas subjetivas existem no máximo como reflexo heterônomo das limitações sacras de suas ações. Em consonância com isto, também é primitiva a coexistência da administração, em princípio totalmente ilimitada, do chefe da família dentro da comunidade doméstica, por um lado, e do processo arbitral, baseado em acordos sobre expiação e provas entre os clãs, por outro. somente nele se discutem 'pretensões' ( direitos subjetivos, portanto ) e pronuncia-se um veredicto; somente nele encontramos - e ainda veremos por que - formas fixas, prazos, regras referentes às provas; em suma, os inícios de um procedimento 'jurídico'. O procedimento do chefe da família no âmbito de seu poder desconhece tudo isso. É a forma primitiva do 'governo', do mesmo modo que aquele procedimento é a forma primitiva da aplicação do direito. Ambos distingüem-se também quanto às suas esferas. a soleira da casa era ainda, incondicionalmente, o limite da justiça da Antigüidade romana. Veremos adiante como o princípio da autoridade doméstica foi transferido, para além de seu âmbito primitivo, a certas formas do poder político : o principado patrimonial, e com isso também a certas formas da aplicação do direito. Onde quer que isso aconteça, rompem-se os limites entre a criação do direito, a aplicação do direito e o governo. A conseqüência pode ser dupla. A aplicação do direito adota formal e objetivamente o caráter de 'administração', realizando-se como esta sem formas e prazos fixos, segundo critérios de conveniência e eqüidade, mediante simples comunicados ou ordens do senhor aos submetidos. Em seu pleno desenvolvimento, essa situação existe apenas em casos-limite. Aproximam-se dela, no entanto, o processo 'inquisitorial' e toda aplicação do 'princípio da atuação oficial', ou, ao contrário : a administração adota a forma de um processo jurídico - isso ocorria em grande escala na Inglaterra e, em parte, ocorre ainda hoje. O Parlamento inglês discute os
private bills, isto é, atos puramente administrativos ( concessões, etc. ), da mesma forma, em princípio, que discute os 'projetes de lei', e a falta de separação das duas esferas é própria do procedimento perlamentar mais antigo, sendo até decisiva para a posição do Parlamento, pois este nasceu como instituição judicial e, na França, chegou a assumir completamente este caráter. Essa dissolução dos limites foi condicionada por circunstâncias políticas. Mas também na Alemanha trata-se o orçamento, um assunto administrativo, como 'lei', seguindo-se o modelo inglês, e por motivos políticos. A oposição entre a 'administração' e o 'direito privado' também se torna indistinta quando a ação dos órgãos da associação como tais adota as mesmas formas que a relação associativa entre indivíduos, isto é, quando os órgãos da associação, em virtude de seus deveres, fazem com indivíduos, membros da associação ou não, um 'acordo' ( contrato ) sobre prestações e contraprestações entre o patrimônio da associação e o dos indivíduos".