A questão do aborto é
paulatinamente discutida e colocada em pauta sob diversas perspectivas. Alguns
apoiam sua legalização a fim da preservação da vida das mulheres, visto que,
milhares dessas morrem todos os anos na prática de abortos clandestinos, sem os
mínimos requisitos de preservação e precaução. Já outros, divergem desta
opinião, alegando ser um pecado ou até mesmo um crime a prática do aborto, sob
a perspectiva religiosa ou não, devido ao fato de haver meios de prevenir a
gravidez ao invés de interrompe-la.
Outrossim, quando se
trata da gestação de uma criança portadora de anencefalia – isto é, má formação
do cérebro durante a formação embrionária, determinando a ausência total do
encéfalo e da caixa craniana do feto, de forma a tornar a expectativa de vida
do bebê muito curta por se tratar de uma patologia letal – o dilema sobre o
aborto se torna mais complexo.
Há de se considerar, não
somente a curta expectativa de vida do feto – que pode acarretar dificuldades
físicas, morais e psicológicas a mãe – mas também os riscos presentes nas
possíveis complicações durante a gestão. Pode ocorrer, por exemplo, o acúmulo
de líquido amniótico no útero da gestante, de modo que, o bebê não seja capaz
de se contrair de forma correta durante o parto, gerando hemorragias naquela
durante o pós-parto. Ademais, os fetos anencéfalos tendem a se posicionar de
formas anômalas durante o parto, acarretando dificuldades em seu processo.
Foi sob esta perspectiva
que a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde interpôs um pedido
formulado na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, objetivando
caracterizar inconstitucional qualquer interpretação do Código Penal Brasileiro
que vise penalizar o aborto de fetos anencéfalos. Este pedido foi fundamentado
na violação dos preceitos constitucionais da dignidade da pessoa humana (art.
1º, IV), da liberdade e autonomia da vontade (art. 5º, II) e do direito à saúde
(art. 6º, caput, e art. 196), presentes na Constituição Federal. O Supremo
Tribunal Federal (STF), no ano de 2012, declarou procedente este pedido,
considerando a interrupção da gravidez nos casos de anencefalia – assim como
nos casos de estrupo ou de risco evidente à vida da mulher – legal.
Vistos,
relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal
Federal em julgar procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da
interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é
conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal,
nos termos do voto do relator e por maioria, em sessão presidida pelo Ministro
Cezar Peluso, na conformidade da ata do julgamento e das respectivas notas
taquigráficas. (JULGADO – p.1)
Foram
levados em conta o fato de que a manutenção da gestação: “resulta em impor à
mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos
riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina”. (JUGALDO – p.14)
Além
disto, tem-se que:
[...]
impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com
plenitude de certeza, não sobreviverá, causa à gestante dor, angústia e
frustração, resultando em violência às vertentes da dignidade humana – a
física, a moral e a psicológica - e em cerceio à liberdade e autonomia da
vontade, além de colocar em risco a saúde, tal como proclamada pela Organização
Mundial da Saúde – o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a
ausência de doença. (JULGADO – p.6-7)
Sobre
a concepção do filósofo e sociólogo francês, Pierre Félix Bourdieu, distintas
condições deveriam ser admitidas pelas decisões estabelecidas no âmbito do Direto,
de forma que, não somente se considerasse o arbítrio de uma classe dominante.
Assim, tem-se que o Direito determina (p.213): “universalmente ao reconhecimento
por uma necessidade simultaneamente lógica e ética”. Sob
esta acepção, temos que o aborto de anencéfalos deve ser analisado mediante
todas suas condições – implicando na sua legalização, devido ao fato dos
possíveis danos causados na gestação – e não unicamente mediante opiniões
arbitrárias de indivíduos conservadores. Ademais, Bourdieu considerava
relevante a adequação das normas a novas situações de modo a gerar maior
viabilidade a tais circunstâncias, afirmando (p.213): “(...) no texto jurídico
estão em jogo lutas, pois a leitura é uma maneira de apropriação da força
simbólica que nele se encontra em estado potencial”. A hermenêutica jurídica
utilizada para legalização do aborto no caso de fetos anencéfalos consiste
exatamente na adaptação da norma a uma circunstância fundamental. Por fim,
pode-se considerar sobre o pensamento de Bourdieu que o Direito, utilizado em
ocasiões de incompatibilidade, deve ser responsável por definir coerentemente e
imparcialmente soluções – que visem, acima de tudo, a manutenção de direitos
fundamentais – de forma a criar um “novo direito” que:
[...]
só tem probabilidades de êxito se as profecias, evocações criadoras, forem
também, pelo menos em parte, previsões bem fundamentadas, descrições
antecipadas: elas só fazem advir aquilo que anunciam [...] porque elas anunciam
aquilo que está em vias de advir, o que se anuncia; elas são mais oficiais do
registro civil do que parteiras da história (p.238-239)
Ao
optar pela legalização do aborto de fetos anencéfalos, o STF, garantiu o direito
da mulher sobre a liberdade e autonomia da vontade, sobre o direito a dignidade
e sobre o direito à saúde. É necessário que este direito ainda seja expandido a
outras circunstâncias, visto que isso preservaria a vida de milhares de
mulheres e evitaria o lucro encima de abortos clandestinos.
(Isabela Rafael Soares - 1º ano Direito Noturno)