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segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

 Boaventura de Sousa Santos e a cirurgia de transgenitalização 

    Boaventura de Souza Santos, no texto "Para uma revolução democrática", discute a centralidade do poder judiciário na regulação da vida social contemporânea, os meios de acesso à justiça, os modos de ensino do direito e a relação entre os tribunais e a efervescência social. Esse último aspecto está muito presente na petição para a realização de cirurgia de transgenitalização enviado à Vara do juizado especial da fazenda pública da comarca de Jales. Isso porque a requisição, que, há alguns lustros talvez nem fosse protocolada por pertencer à ala das "aberrações diabólicas de resolução familiar", acabou atendida com embasamento amplo no entendimento cientifico contemporâneo de que a transgeneridade é somente um  modo de ser.

    O pensador português explica que, na maior parte do século XX, tribunais do mundo todo estavam imersos no conservadorismo, de modo a não acolher sequer, por exemplo, o New Deal, proposta de Roosevelt para socorrer milhares de famílias desfazendo-se por inanição enquanto esperavam na chamada "fila da sopa". Não é difícil concluir, então, que um pedido para realizar tal cirurgia na genitália sequer chegaria a um togado. Desse modo, Boaventura busca entender o que ocorreu em 1980, década de transformação da atuação judiciária. 

    Para ele, o judiciário passou a colocar-se como ente político, o que fica nítido, dentro da petição em análise, quando se esclarece a necessidade de lutar contra uma ideia de família-padrão hierarquizada e contra a psiquiatrização da condição transsexual. Nesse caso, o texto processual ainda vai além: cita, indiretamente, Freud, ao esclarecer que o ataque aos desejosos de transgenitalizar é um tentativa de punir o destoante e responsabiliza o capitalismo por essa necessidade de uniformização dos corpos. Está aí algo inconcebível para a versão pretérita dos agentes do direito, que opunham-se a qualquer tentativa de romper com as ideias de Adam Smith. 

    Boaventura, contrário à onda neoliberal que vigora no mundo,  menciona a importância do incentivo à assistência jurídica popular, que não aparece na petição em questão mas pode, sim, estar em outras do mesmo tipo. Ele também fala dos juizados especiais, e é um desses que acolheu o documento. Acerca deles, o pensador comenta que existem como um experimento do judiciário brasileiro para vencer a morosidade, atender pequenas causas e aproximar o órgão de justiça da sociedade, uma vez que a linguagem utilizada pelos funcionários que ali estão é mais simples e visa mais conciliar que julgar . Toda essa retirada de pompa explica o interesse desse órgão em acolher o pedido de um dependente do Sistema Único de Saúde para usufruir de sua dignidade sexual. 

   O autor do texto que embasa essa discussão registra também que as faculdades de direito no Brasil atual são muito numerosas e muito tecnicistas, o que, por uma extensão de sentido, significa que um jurista formado por elas consideraria uma instituição notável como o casamento um contrato entre homem e mulher e, com base na letra desse artigo, desconsideraria a importância da requisição para ultrapassar o limite binário. A problemática desse cenário, além dos prejuízos individual do requerente e coletivo do grupo que ele representa, é que quem assim legisla ou julga está a ignorar séries de recomendações da ONU, por exemplo, que têm muito mais conteúdo e relevância que palavras de 1988 já rebatidas pela jurisprudência. 

    Logo, fica claro que, para vivenciar uma revolução democrática, de acordo com Boaventura de Souza Santos, é preciso estimular a diversidade de públicos e demandas a subir até os tribunais. A requisição aqui apresentada exemplifica bem a variedade dos pedidos em relação àqueles que alcançavam auxílio em décadas passadas. E os fatos de que a petição passou por um juizado especial, requereu um serviço do SUS e foi escrita em linguagem relativamente acessível mostram que o projeto de Boaventura já está em curso e que, através dele, cada vez mais angústias serão sanadas por intermédio oficial. 

Maria Paula Aleixo Golrks - 2° semestre - Direito matutino 




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