Ao pensarmos no conceito de epistemologia, compreensão em torno da produção e da origem do conhecimento, podemos nos deparar com a noção positivista de Auguste Comte que, em sua análise, defende a ciência como construtora do conhecimento unicamente verdadeiro. Além disso, para o filósofo, as sociedades deveriam passar por três estágios sequenciais: teológico, metafísico e positivo (científico), sendo este último, o estado final para o qual a humanidade presenciaria a razão e a observação como bases do conhecimento. No entanto, nessa corrente filosófica, a ciência está longe de ser um saber neutro e objetivo, uma vez que Comte acreditava que o estágio positivo só era encontrado nas sociedades europeias do século XIX, especialmente na Inglaterra e na França. Assim, essa visão eurocêntrica direcionava seu olhar a essas sociedades e negligenciava a produção científica e intelectual de outras regiões não europeias.
É nesse aspecto final que surge Grada Kilomba, autora portuguesa que critica a teoria de Comte a partir de uma reflexão: "Quem pode falar?". E engana-se quem pensa que a resposta para essa pergunta é simples, na realidade, ela expõe que as dinâmicas de poder determinam quem pode falar e ser realmente ouvido nos espaços acadêmicos e sociais. A partir disso, a crítica recai sobre a estrutura colonial do passado que, de certa forma, também se manifesta no presente e ainda mantém certos grupos marginalizados e em condição de subalternidade, como as mulheres negras, por exemplo. Esse mecanismo "colonial moderno", inclusive, resgata condutas passadas, ao utilizar do próprio poder para perpetuar sua dominação e silenciamento quando lhe convier. Para Kilomba, o modo de desmantelar esse sistema dominante é nos concentrarmos em descolonizar o conhecimento ou, em outras palavras, entrarmos em um processo de "independência ideológica" dos conceitos de belo, certo e perfeito criados pelos ocidentais e europeus.
Essa exclusão epistêmica, denunciada por Grada Kilomba, manifesta-se historicamente de diversas formas, afetando principalmente os negros. Um exemplo emblemático foi o assassinato da vereadora e ativista Marielle Franco que – quando analisado a partir de um sistema que coloniza o conhecimento e decide quem pode falar – representa muito mais do que uma tentativa de silenciar só uma voz: é o apagamento simbólico e pragmático de muitas "Marielles" que também querem ocupar espaços de poder e denunciar a violência e os abusos contra a população negra e periférica. Esse caso, como dito anteriormente, não se trata de algo isolado, mas sim parte de um sistema, denunciado por Cida Bento, como "pacto da branquitude". Tal conceito trata-se de uma experiência imaginativa na qual brancos decidiriam arbitrariamente excluir pessoas negras dos espaços sociais. Porém, apesar de estar no plano imaginário, é como se realmente houvesse um consenso entre estruturas de poder majoritariamente brancas em agir na dominação e exclusão dos corpos negros, como o de Marielle.
Por fim, ao tomarmos a corrente positivista como referência, veremos como ela e tantas outras formas de conhecimento científico – reputadas como um saber neutro e objetivo – colaboraram para a exclusão do pensamento e da cultura de sociedades não europeias. A teoria de Comte, ao estabelecer o estágio científico como o ápice do desenvolvimento humano, porém só observado a partir de uma perspectiva eurocêntrica, contribuiu para que a dicotomia física ocidente/oriente representasse também as ambivalências ideológicas de certo e errado, bonito e feio, objetivo e subjetivo, respectivamente. Assim, através da crítica de Grada Kilomba às estruturas de poder dominantes na sociedade , ela também desafia a neutralidade do saber científico e a forma como o Positivismo foi instrumentalizado para excluir saberes que escapassem do padrão encontrado na Europa.
OTÁVIO RODRIGUES FERIN - 1º ANO DIREITO NOTURNO.