Na obra “Para uma revolução democrática de justiça”, Boaventura de Sousa Santos apresenta propostas para combater o modelo jurídico hegemônico. Segundo o autor, o Direito configura-se atualmente como uma ferramenta alienante e despolitizada, a qual apenas promove a continuidade das estruturas vigentes na sociedade. Diante dessa realidade, Santos defende a necessidade do pensamento e da prática emancipadores, os quais consistiriam em uma ampliação do espaço dos possíveis por meio da busca por alternativas democráticas. Com isso, o Direito tornar-se-ia uma ferramenta de luta contra-hegemônica, a qual poderia transformar a estrutura dominante de baixo para cima.
Essa proposta está diretamente relacionada à defesa dos direitos de grupos vulneráveis. Para tal, o autor defende a chamada advocacia popular, a qual estaria voltada para a efetivação de direitos coletivos por meio da adoção por parte do operador do Direito de uma postura de engajamento político e social. Em outras palavras, deve ser estabelecido um compromisso com as causas populares, de modo que o advogado defenda-as como um projeto próprio.
Para ilustrar tal concepção do Direito enquanto ferramenta contra-hegemônica, pode-se citar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) a qual considerou a Lei 3.491/2015 do Município de Ipatinga (MG) inconstitucional. Esta vedava a promoção de quaisquer temas relacionados à diversidade de gênero nas práticas pedagógicas e no cotidiano das escolas, bem como qualquer abordagem sobre orientação sexual ou “ideologia de gênero”. O ministro Gilmar Mendes, relator do processo, declarou que:
“(…) as normas impugnadas, ao proibirem qualquer referência à diversidade de gênero ou a ações educativas que mencionem questões envolvendo a orientação sexual nas práticas pedagógicas e no cotidiano das escolas em Ipatinga/MG, acabam cristalizando uma cosmovisão tradicional de gênero e sexualidade que ignoram o pluralismo da sociedade moderna.”
Além disso, também foram citadas no processo as ideias de Peter Häberle, o qual, conforme consta no julgado, “defende uma ordem constitucional pluralista e democrática, compreendida como um ‘compromisso de possibilidades’, ou seja, uma proposta de soluções e coexistências possíveis, sem a imposição da força política de cima para baixo”.
Dessa forma, percebe-se que a postura adotada pelo STF nesse caso está de acordo com a ideia de Direito emancipatório proposta por Santos. Ao reconhecer que a referida lei era inconstitucional porque promovia a manutenção de uma ordem hegemônica a qual ignora o pluralismo da sociedade, o STF busca alternativas democráticas de modo a ampliar o espaço dos possíveis. Ademais, também é fundamental ressaltar que o processo em questão contava com a Aliança Nacional LGBTI e o Grupo Dignidade Pela Cidadania de Gays, Lésbicas e Transgêneros na condição de amicus curiae. Com isso, nota-se que a decisão teve influência de grupos políticos emancipatórios representantes de parcelas vulneráveis da população, ou seja, houve uma transformação contra-hegemônica promovida de baixo para cima, conforme defende Santos em sua obra.
Johann Plath – Direito Matutino
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 467 Minas Gerais. Recorrente: Procurador Geral da República. Recorrido: Prefeitura do Município de Ipatinga. Relator: Min. Gilmar Mendes, 18 de outubro de 2019.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. 3a. Edição. São Paulo: Cortez, 2011. [Cap. 2: “O acesso à justiça”, p. 31-47; Cap. 3: “O ensino do direito e a formação profissional”, p. 54-66”]
Nenhum comentário:
Postar um comentário