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sábado, 4 de dezembro de 2021

Análise da prisão de um inocente: a defensoria pública e suas aplicações

Utilizando das propostas sociológicas do Dr. Boaventura de Souza Santos, mais especificamente do livro “Para uma revolução democrática da Justiça”, analisarei o RECURSO ESPECIAL Nº 802.435 de 19 de outubro de 2006, do na época Ministro do STJ Luiz Fux.

Descrevendo brevemente o caso, o presente REsp foi feito pelo Estado de Pernambuco contra o Sr. MMS depois de ter sido condenado ao pagamento de R$2 milhões. Esse valor indenizatório se deve aos 13 anos que MMS passou preso, onde sofreu de tuberculose e ficou cego de ambos os olhos depois de uma rebelião. Contudo, o fato mais importante desse caso e que relembra até mesmo o livro “O processo”, do escritor alemão Kafka, é que ele era completamente inocente dos crimes a ele atribuídos, mesmo assim ficou mais de uma década preso sem sentença, tendo seu direito mais básico – da liberdade – indevidamente cerceado. 

Essa situação remete à teoria do Boaventura, principalmente pelo senhor MMS ser a pessoa que amparava a sua família a qual, nesse tempo de prisão, ficou à “mercê da sorte e da caridade de terceiros para colher migalhas que alimentassem a si e a sua família atual (mulher e filho)” (REsp, fl.18). São esses os momentos que percebemos a importância da defensoria pública como figura que deve aplicar a “sociologia das ausências” (SANTOS, p. 33), que deve ajudar aqueles cidadãos constantemente colocados a margem da sociedade, apagados, essa assistência é um pilar fundamental para a afirmação dos direitos de uma pessoa. 

A defensoria pública é de suma importância para defesas de pessoas como MMS, bem como do Cícero José de Melo¹, Eugênio Fiuza de Queiroz², Igor Barcellos Ortega³ e muitos outros. Basta dizer que “No Brasil, as defensorias públicas estão constituídas como instituições essenciais à administração da justiça, tendo como principal objetivo a orientação jurídica e a defesa da população mais carenciada” (p. 32). No entanto, resta a dúvida do porquê dessa instituição falhar tantas vezes, como nos casos citados anteriormente? 

A resposta é bem simples e já foi trazida pelo Boaventura no seu texto, esta remete aos problemas da defensoria pública, tais como os de “característica estruturais, organizacionais e funcionais das defensorias estaduais” (p.34), a falta de orçamento quando comparada com outras instituições do judiciário, sua pequena estrutura, o quadro reduzido, com pequena atuação e o constante confronto com outros órgão do estado. Dessa forma, percebe-se que essa estrutura tão importante para o acesso a justiça vem sendo constantemente depredada, alcançando, conforme dados trazidos no livro pelo sociólogo, apenas 50% das comarcas existentes, tendo ainda o dever/necessidade de alcançar mais regiões e melhorar o atendimento. 

Outra importância da defensoria pública que merece destaque por relacionar-se ao caso é acerca da sua função como uma instituição que ensina às pessoas não vinculadas ao judiciário um pouco de direito, tirando-o daquela torre de marfim. Essas assistências judiciárias agem contra o uso do direito como “instrumento hegemônico de alienação das partes” (SANTOS, p. 46), tratando-o como objeto de mudança. Quantos dos casos anteriormente citados e o REsp – objeto da presente análise – poderiam ter sido evitados se aqueles cidadãos tivessem conhecimento de seus direitos? 

Portanto, caminhando para a finalização, não poderia deixar de destacar a importância das AJUPs (visto que integro a AJUP Unesp Franca) em casos como esse. Afinal, a AJUP tem essa aplicação como defensor e figura que ensina direitos as pessoas mais carentes, pois é sabido que as pessoas detidas acidentalmente no Brasil têm cor e classe social, por isso o trabalho de extensões como essa, conectando o campo universitário da população, mostrando que mesmo que a sociedade faça algumas pessoas parecerem sem direitos, elas os têm. Então, se a defensoria falha, a AJUP tem obrigação de tentar prevenir casos como esse ocorrido em Pernambuco.

¹Pedreiro é solto no Ceará após 16 anos preso por crime que não cometeu (metropoles.com)

²Justiça condena Estado a pagar R$ 2 milhões a homem preso 17 anos injustamente - 28/04/2021 - Cotidiano - Folha (uol.com.br)

³Após quase três anos preso por crimes que não cometeu, jovem é solto com ajuda do Projeto Inocência | Fantástico | G1 (globo.com)

GABRIEL RIGONATO - TURMA 38 - NOTURNO - 2º PERÍODO

Narciso e Eco , Norte e Sul .

     O mito de Narciso e Eco é uma narrativa da mitologia  grega  que conta a história de um rapaz que só olhava para si próprio, e por isso , foi condenado a se apaixonar por alguém que não corresponderia ao seu amor, nesse caso ele se apaixonou pelo seu próprio reflexo. Eco era uma ninfa que, por falar demais , também foi condenada pelo Deus Juno a  repetir, estritamente, as últimas palavras escutadas. Nesse sentido, enquanto Narciso fica petrificado olhando para sua imagem e dizendo: amo-te, volta para mim, Eco que é apaixonada por Narciso repete “ volta para mim “, “ para mim”, ou seja, Narciso não conseguia ver nada a sua volta a não ser o reflexo da sua imagem, era como se outros não existissem .Além disso, Narciso conta com o consenso de Eco , que só repete e valida tudo que ele diz , sem questionar , pois Juno retirou essa autonomia dela .

É possível fazer um paralelo entre o mito supracitado e o artigo da jurista Sara Araújo ;O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone. Os estudos de Sara Araújo esclarece que o direito moderno eurocêntrico é um instrumento poderoso de reprodução do colonialismo, que promove exclusões abissais (p.88).Nesse aspecto, ela também esmiúça com primor a metáfora do pensamento abissal , proposto , inicialmente, pelo  professor Boaventura de Souza Santos. De acordo com esta análise , o pensamento moderno impõe e estabelece os limites de uma linha abissal que divide o mundo entre o universo “ deste lado da linha” e o “universo do outro lado da linha"(p.96), ou seja, tudo que é posto pelo norte é considerado válido, legítimo e  digno, enquanto que toda forma de conhecimento, costumes,  engendradas no sul são considerados atrasados . Desse modo, temos o norte como Narciso e para o  sul foi imposto o papel de Eco, no sentido de reverberar o que é dito lá, da mesma forma que o Deus Juno condenou Eco a repetição o sul também  foi condenado , ou ao silêncio , ou  somente  falar se for palavras ou conceitos repetidos.

A Ação Direta  de Inconstitucionalidade  (ADI) número 4439/STF à luz da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (lei 9.394/96)  permite uma análise a partir dos conceitos elucidados por Sara Araújo .Na referida ação, a Procuradoria Geral da República impetrou uma ADI em face da inclusão de ensino religioso confessional, que consiste em uma disciplina que segue os ensinamentos de uma  religião específica . A PGR entendeu que a inclusão desse ensino estava em desacordo com o artigo 19,inciso I ,da  Constituição Federal , pois além dessa disciplina ser extremamente tendenciosa ela ainda faria com  que o preconceito religioso se propagasse entre os estudantes , haja vista que o projeto inicial seria ter várias religiões distintas disponíveis  e o aluno por livre espontânea vontade participaria  daquela que melhor lhe convir. Mesmo sendo uma decisão óbvia , o STF surpreendeu e por seis votos a cinco e o pedido da PGR foi indeferido e a partir do dia 27 de setembro de 2017 , a disciplina passou a fazer parte do ensino público brasileiro, salvo escolas particulares. .

Sob esse viés , é possível depreender, portanto, que a Suprema Corte agiu de acordo com as epistemológicas fundamentadas no norte , pois é de conhecimento de todes  que  a população originária que habitava o Brasil  foram coercitivamente catequizado  pelos padres portugueses e , devido a isso outras formas de culto  foram invisibilizadas ou foram demonizadas , e somente a religião trazida pelos europeus , ou seja , o  catolicismo foi posto como sacrossanto, claro que atualmente o protestantismo, em especial , as igrejas neopentecostais tomou uma dimensão absurda. Nesse sentido , em seu artigo Sara Araújo destaca o trecho do pensamento do jurista estadunidense  Ralph Nader , “ (..) no contexto do colonialismo e do imperialismo, o primado do direito pode resultar em desordem e não em ordem, promovendo a continuidade da opressão , em vez da interrupção  da prática colonial (...)” , desse  modo , o STF deveria agir com o intuito de extirpar essa dicotomia, uma vez que as religiões consideradas não hegemônicas , sofrem preconceito e discriminação até hoje “.Além disso, Sara Araújo é precisa ao detalhar  que o direito espelha-se em cinco monoculturas jurídicas da razão metonímica, ou seja , torna uma parte com um todo, melhor dizendo , viabiliza somente o que é hegemônico e atribuí de modo persuasivo sua máxima a todos, atravessando todas as  barreiras geográficas .A vista disso, temos a carta de direitos humanos que é de matriz totalmente eurocêntrica , lembrando que a nossa Constituição é embasada nesses preceitos ,ou seja, não leva em conta as particularidades de cada país . Tanto que na mesma constituição que prevê a laicidade do Brasil, também dispõe no artigo 210 , que o ensino religioso , de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários  normais das escolas públicas de ensino fundamental .Desse modo, Sara Araújo afirma “ (...)A Constituição, ainda que seja intercultural,  não deixa de ser um instrumento eurocêntrico e está sujeita às diretrizes que vêm das regulações internacionais” .

Infere-se, portanto, que os conceitos explanados pela jurista portuguesa Sara Araújo é de extrema valia para população que está do outro lado da linha , ou seja , no hemisfério sul , uma vez que a partir do entendimento desta dominação velada que sofremos , seremos capazes de reverter no sentido de buscar um pluralismo jurídico , centrados nas pessoas e não nos mercados. Com efeito, é necessário preencher o direito com epistemologia de pessoas pretas, LGBTQIA+, indígenas , pautas que ainda se encontram demasiadamente silenciadas .  Em suma o STF manteve o ensino religioso confessional , mesmo sabendo que isso configura um desrespeito  com as demais denominações , na realidade em momento algum foi levada em consideração a pluralidade que habita no Brasil , porque o primado do direito ainda impera nos tribunais. Por fim , segundo a referida jurista é “necessário recuperar o conceito de pluralismo jurídico em um horizonte de reconhecimento de outros universos jurídicos (p. 111)”. Ademais, ela continua “(...) as Epistemologias do Sul devem ser um projeto epistêmico e político. Aliás, ela não só propõe uma descrição de pluralidade , mas também uma transformação das hierarquias impostas pela modernidade. O fetichismo do primado do direito moderno tem que ser ultrapassado”. Urge , portanto, que o sul precise deixar de reverberar as atitudes narcísicas do norte  , deixemos de ser Eco e passemos a ter autonomia das nossas epistemologia.

 

Referências :

 

Acórdão-4439-Ensino-Religioso-STF.pdf - Google DriveA descolonização do pensamento na obra de Grada Kilomba - ARTE!Brasileiros (artebrasileiros.com.br)

(2021) Bibliografia Básica - SOCIOLOGIA DO DIREITO (2.º sem) (google.com)

Pollyanna Nogueira . Direito noturno . 
Turma XXXVIII 

DIREITO, O BRINQUEDO DE ENCAIXAR DA SOCIEDADE: PRECONCEITO CONTRA RELIGIÕES AFROBRASILEIRAS

Com base no artigo “O primado do direito e as exclusões Abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone” da Dra. Sara Araujo, importante socióloga e pensadora do direito na modernidade, analisarei a sentença proferida em 28 de abril de 2014 pelo Juiz Federal Eugênio Rosa de Araújo, o qual pode ser encontrado nos autos do Processo nº 0004747-33.2014.4.02.5101 (Rio de Janeiro/RJ).

Em resumo, o juiz em questão negou a retirada de alguns vídeos com mensagens intolerantes e preconceituosas da plataforma Youtube, fundamentando seus argumentos na seguinte ideia: “As manifestações religiosas afro-brasileiras não se constituem em religiões (...)” fl. 154 - sentença essa não passa de uma decisão racista e que perpassa ideias fundamentadas desde a colonização do Brasil

A teoria da Dra. Sara traz a ideia de que o mundo pode ser dividido em duas partes por uma “linha abissal” e que de um lado ficam aqueles conhecimentos hegemônicos e ocidentais, enquanto o outro lado ficaria com aqueles conhecimentos contra-hegemônicos e que não são “dignos” de serem conhecidos e recaem a invisibilidade. Essa concepção resume em grande parte a decisão desse juiz. 

Ele está tão centrado na lógica colonialista que ele assenta sua decisão na compreensão ocidental do mundo que é “nutrida de uma lógica evolucionista, que sobrepõe diferença, inferioridade e anacronismo''. O outro não é só selvagem, é atrasado, primitivo e arcaico.” (p. 97)

Além disso, o juiz escreve em sua decisão que as religiões afrodescendentes não tem as estruturas “típicas” para serem coroadas ao nível de religião, como a ausência de um livro sagrado (ele menciona a bíblia e o alcorão), bem como a considera esses credos desprovidos de um Deus. Essa busca por uma constante rigidez de conceitos, como se coisas diferentes da estrutura ocidental de religião não tivessem o mesmo valor, fosse inferiores. Novamente isso recai em um preceito idealizado pela autora do artigo quando ela disserta sobre uma viagem dela à Maputo, capital de Moçambique, onde ela objetivou o seguinte: “‘escutar’ o terreno mais livre de preconceitos, evitar a exclusão de estruturas relevantes apenas por não se encaixarem numa definição fechada (...)” (p. 108). Por isso, o juiz em questão foi simplesmente preconceituoso e limitado ao não tomar uma religião como religião por ela não ter aquela construção típica de alguns outros credos. 

São por juízes como esses que o direito continua como uma estrutura fixa de imposição, um elemento que subjuga culturas por não serem majoritárias, mantendo a aquela ideia do “One-Size-Fits-All” (p. 100). A realidade é que as religiões afro-brasileiras podem não ter o Deus esperado pelo magistrado, não ter o livro que ele considera essencial, mas não deixa de ser uma religião, ela merece não ser vista com essa ideia de que é igual a qualquer outra manifestação constantemente protegida pela ocidentalidade, pois ela não é. Elas são culturas assassinadas frequentemente e que precisam de “soluções específicas para cada problema” (WOJKOWSKA, 2006 apud ARAÚJO, 2016, p.100). Ela não deve ser inferiorizada, muito menos ser julgada com ideias prontas, como se ela fosse como uma instituição ocidental, pois isso é só mais um fundamentador de preconceitos e da ideia colonial de subordinação. 

A estudiosa portuguesa escreve na página 97 algo que merece ser destacado, pois mostra explicitamente que usar um direito para qualquer situação é algo péssimo para o pluralismo cultural e para a decolonização da sociedade e do pensamento: “Uma categoria [monocultura jurídica - desprezo dos direitos locais que não figuram uma sociedade capitalista, coloca essas formas jurídicas no campo da invisibilidade] que nasceu com potencial emancipatório é hoje instrumentalizada para promover a ordem colonialista, capitalista e neoliberal”

São juízes como o Dr. Eugênio Araújo que tornam a justiça brasileira tão ineficiente, injusta, e presa da mentalidade colonial, não sabendo tomar uma decisão sem invisibilizar a cultura que está “do lado de lá” da linha abissal, usando o direito como uma figura fixa que deve caber em todas as realidades, o que não passa de uma falácia. 


GABRIEL RIGONATO - TURMA 38 - NOTURNO - 2º SEMESTRE

PINHEIRINHO E A FALTA DO ENSINO/CONHECIMENTO JURÍDICO

 

Boaventura de Sousa Santos assume a ideia fundamental do direito sobre uma nova perspectiva contra hegemônica, estendendo-se sobre o fato dele necessitar de uma expansão e transformação perante a luta da sociedade. Assim, essa ideia de ampliação ao acesso ao direito/justiça deve ser realizada, visando ter cidadãos cientes de seus direitos, o que poderia ter evitado as barbaridades ocorridas no caso que utilizarei de exemplo ao discorrer do texto abaixo, o famoso caso Pinheirinho.

Todo o caso se inicia quando, em 2004, várias pessoas foram despejadas de um terreno próximo a região e começaram a ocupar o terreno que futuramente seria apelidado de bairro Pinheirinho, no qual ainda era uma vasta área completamente vazia. Desse modo, no mesmo ano, uma empresa iniciou um processo de reintegração de posse da área, alegando que o terreno ocupado era de sua propriedade e necessitava de ser desocupado. Como desfecho, após vários tramites judiciais, tivemos uma execução da decisão judicial de reintegração de posse da área, que infelizmente ocorreu de um modo totalmente violento e com diversos abusos de poder que feriram com direitos básicos dos ex-moradores do Pinheirinho.

 Porém, além dos abusos violentos cometidos na execução da ordem judicial, percebemos vários problemas judicias sobre a formalidade do terreno que a empresa reivindicava dizendo que era de sua propriedade. O fator que mais chama atenção é a suspeita de que ocorreu fraude na escritura do terreno, ou seja, a empresa poderia estar reivindicando um terreno que na verdade nem era dela. Ademais, a posse do terreno nunca foi feita por parte da empresa, algo que consequentemente fere o princípio de função social da propriedade, que não estava sendo exercido durante todo esse tempo.

Dessa maneira, chegamos ao ponto crucial que relaciona esse caso com a ideia de acesso à justiça e expansão do ensino jurídico trazida pelo professor Boaventura, da qual se exprime que os cidadãos deveriam ter conhecimento de seus direitos fundamentais. Entretanto, no caso analisado os moradores do bairro Pinheirinho, não possuindo esse conhecimento de seus direitos básicos, acabaram sendo violentados e despejados de uma área na qual os conceitos jurídicos de propriedade estavam sob um grande número de irregularidades.

Portanto, fica claro a falta de ensino e acesso a direitos, principalmente os básicos, o que resultou nessa barbaridade ocorrida no bairro do Pinheirinho, algo que poderia ter sido evitado se tivéssemos essas transformações jurídicas explicadas por Boaventura, na qual o direito iria ser utilizado como um grande instrumento contra hegemônico e não como uma arma nas mãos de quem detém um maior poder na sociedade.

TENTATIVA DE ROMPER COM UMA “LINHA ABISSAL” DA SOCIEDADE

 

Sara Araújo propõe, na obra analisada, uma abordagem em que “se a ciência moderna estabelece os parâmetros da sociedade civilizada, o primado do direito assegura a sua tradução em limites a que os sujeitos são submetidos e em mapas circunscrevem o horizonte de possibilidades (p 90)”. Dessa forma, em nossa sociedade existe a famosa “linha abissal” em várias perspectivas, na qual Sara explica que o pensamento impõe uma linha que divide o mundo entre dois lados, um com as perspectivas consideradas avançadas/” normais” e o outro com tudo aquilo que consideram atrasado/banal.

Feita essa introdução vamos para o contexto da liminar que o STF derrubou, na qual haviam permitido o recolhimento de obras com temática LGBT que fossem voltadas ao público infanto-juvenil e não estivem lacradas. Assim, nessa ótica percebemos como a heterossexualidade é considerado um parâmetro “correto” pela nossa sociedade, considerando do outro lado da linha a questão do homo transexualismo como algo banal e que não deve ser exposto.

De forma síncrona, ao entender a autorização para o recolhimento de obras com temática LGBT, fica evidente a imposição de um pensamento hegemônico no qual temos a heterossexualidade como a única ideia válida. Além disso, é notório a tentativa de tornar invisível o tema homo transexualismo, pois na notificação impetrada se diz para recolher obras com esse conteúdo que não estejam sendo comercializadas em embalagem lacrada. Ou seja, para que essas obras serem comercializadas teríamos que “invisibilizar” seu conteúdo?

Portanto, o STF barrou essa liminar, algo que pela visão das ideias da Sara Araújo pode ser entendido como uma tentativa de romper com uma “linha abissal” da sociedade se tratando de uma questão de sexualidade e gênero. Assim, como a Bienal do Livro é um ambiente em que autores e leitores exercem seus direitos, não se pode censurar essas obras fundamentando-se nessas alegações. Ademais, como destacou a PGR, a suspensão da liminar foi necessária uma vez que estaria por ferir os direitos de igualdade, liberdade de expressão artística e o direito à informação.

Os vários direitos

        Sara Araújo em seu artigo "O primado do direito e as exclusões abissais" explana e propõe a ideia de que a universalidade e unicidade do direito é um mito colonialista prejudicial para ele próprio. Passando pela história do direito ela associa a imposição deste mito com a expansão do modelo colonial e capitalista, fazendo isso por meio da aparência de sistema legal neutro e justo, ele na verdade perpetuaria as injustiças e opressões internas ao sistema sob o pretexto de seguir a lei.

        O pensamento ocidental ao longo de sua história é acima de tudo um pensamento de restauração do que considera como grande em sua história, em especial seu passado greco-romano. Ambas as culturas,  que se fazem até hoje o estandarte de grandeza materializado deste pensamento, foram culturas universalizantes. A helenização e romanização do mundo até hoje influencia a categorização das ideologias que surgem no ocidente, sendo elas sempre consideradas o certo e o civilizado, e na sua aplicação tendo um grande ímpeto, herdado deste mesmo passado e compartilhado por quase todas elas,  de "civilizar" os "bárbaros" da vez que delas ainda não partilhem. 

        O que antes era um discurso inflamado de Cato aos seus pares no senado romano acerca dos rituais de infanticídio cartaginenses, certamente finalizado com a célebre frase, "Carthago delenda est!", é hoje o discurso dos senadores americanos ou burocratas de algum comitê da ONU acerca das leis opressivas, aos seus moldes, dos chefes tribais afegãos ou de algum país do oriente médio acerca das mulheres e homossexuais.

        Neste artigo, Sara relata brevemente um estudo conduzido por si com fim de catalogar esses direitos "paralelos" numa cidade de Moçambique. Tendo enfoque em 3 casos principais: das esquadras de polícia, onde os policiais de uma unidade serviam como mediadores de pequenas disputas. De uma ONG e uma organização estatal, ambas focadas no atendimento de mulheres vítimas de violência e de mediação de conflitos. Porém, há de se ir além no caso brasileiro, onde não só há instâncias análogas às do estudo africano, mas também outros casos particulares à América Latina e ao "Sul" como um todo; Os tribunais paralelos de organizações locais e paramilitares.

        Para esta breve análise deste "choque" entre os direitos é possível trazer o julgamento do Processo Nº 0002659-84.2015.8.12.0021, onde um juiz da 1ª instância de uma vara criminal mato-grossense condena 7 envolvidos no julgamento e decretação de pena capital em um acusado de abuso infantil da comunidade informalmente sob sua jurisdição. Tais exemplos coalham o judiciário brasileiro e latino americano diariamente, análogos em forma às diversas formas de julgamentos executados por "conselhos tribais" por todo o "sul" global, existem neles seus próprios códigos processuais, leis e punições. Tribunais estes que não são reconhecidos pelo direito convencional e que na verdade são ostensivamente perseguidos e ilegitimados. Também pode ser citado este choque no caso do "conselho municipal" que condenou a irmã de 16 anos de um homem acusado de estuprar uma garota de 13 anos fosse estuprada pelo irmão da vítima como punição pelo crime de seu próprio irmão, o caso aconteceu na cidade de Multan, no Paquistão. O governo paquistanês prendeu 25 integrantes deste conselho por considerar o julgamento ilegal. *

        O que traz a controvérsia da questão inclusive abordada de passagem pela autora original como uma das razões para a oposição à pluralidade dos direitos; a possível injustiça destes outros sistemas legais. Existiria algum limite para o qual algo é direito ou não? Um sistema híbrido onde operam concomitantemente os supracitados tribunais do crime e o "conselho municipal" juntamente com o sistema legal moderno de qualquer país é de fato mais plural do que um sistema legal enrijecido e uno. Porém seria esta pluralidade algo a ser buscado ou desejado? Quais seriam os limites destes sistemas e quem poderia ditá-los sem fazer papel de "colonizador", jogando do "lado de lá" da linha abissal estes direitos locais movido por suas próprias concepções "nortenhas" de justiça? São estas perguntas que incitam reflexões interessantes e necessárias para a melhor compreensão destes conflitos e são possivelmente as parteiras de uma solução vindoura para este impasse.

* https://www-thescottishsun-co-uk.translate.goog/news/1340063/outrage-as-girl-16-is-sentenced-to-be-raped-by-pakistani-court-in-retaliation-for-her-brother-sexually-abusing-a-13-year-old-girl/?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=en-US

Rafael C. M. Martinelli 2o sem/direito/noturno