O
julgamento da ADI 4277 trouxe uma grande ruptura com os padrões que se
perpetuam nas decisões judiciais. Nele, o Supremo Tribunal Federal (STF)
proclamou que a união homoafetiva é considerada como entidade familiar e que,
por isso, deve usufruir dos mesmos direitos e deveres que a união estável entre
homens e mulheres que seguem o modelo da heteronormatividade. A partir da
intervenção de uma série de amicus curiae, como o do Instituto Brasileiro de
Direito de Família, foi utilizado, para conclusão da análise, o art. 1.723 do
Código Civil brasileiro em conjunto com sua interpretação a partir da
Constituição.
Através de uma visão jurisprudencial,
por meio de argumentos metajurídicos, o ministro relator, Carlos Ayres Britto, fez
uma digressão juridicamente precisa pelos princípios da dignidade da pessoa
humana, da não-discriminação, da igualdade e da liberdade no que toca à
sexualidade, que revelaram sua discordância em relação a ocasiões que negam
direitos válidos a indivíduos por estes não se encaixarem totalmente em
situações já jurídica e expressamente tuteladas. Outros ministros, como Luiz
Fux e Carmem Lúcia também seguiram o posicionamento do relator e, por estudo do
artigo 226 da Constituição Federal, apontaram que a família não é um fato necessariamente
biológico e, desse modo, pela própria base constitucional não ter diferenciado
famílias fáticas das formalmente constituídas, não haveria distinção entre famílias
hetero e homossexuais. Logo, como supracitado, a união homoafetiva deve ser
configurada como entidade familiar.
Racionalizando o Direito, conceitos
de Pierre Boerdieu podem ser aplicados no julgamento em questão. Nesse contexto
de reivindicações sociais igualitárias, é possível verificar um conflito no
espaço dos possíveis garantido pela própria Constituição, o que coloca em
protagonismo o poder simbólico. Tal poderio explicita o entrave entre
diferentes classes ideológicas para obterem autoridade e, consequentemente, atingirem
mais facilmente seus interesses, sendo que os casais homoafetivos sofrem
constantemente por não conseguirem atingir o domínio desse poder e, assim, suas
pautas vão ficando para depois. Nesse sentido, também entra a importância da
historicização da norma, ou seja, não é viável que as normas atuais continuem
seguindo visões preconceituosas e conservadoras dos séculos passados, o que faz
com que se torne realmente imprescindível que a ADI 4277 fosse julgada
procedente pela maioria, assegurando o livre exercício de toda e qualquer forma
de amor para seres humanos iguais, em pleno século XXI.
Por outro lado, a questão trouxe
levantamentos entre os constitucionalistas no sentido de que o STF estaria
afrontando a separação de poderes e utilizando o poder legislativo de maneira
desenfreada, opinião que foi rebatida pelos ministros em alguns de seus votos,
uma vez que o grupo social de minorias estava somente buscando a efetivação de alguns
de seus direitos. A judicialização, que, para Garapon, é um fenômeno
político-social, chega, em alguns momentos, a ser cunhada de ativismo judicial,
termo que está associado a uma participação mais ampla e efetiva do Judiciário
na execução de valores constitucionais, com maior interferência no espaço de
atuação dos outros poderes.
Tal
atividade divide opiniões, enquanto Barroso diz que o Judiciário vem intervindo,
porque é o que lhe cabe fazer no papel de defensor do povo, já que o
Legislativo se exime dos projetos de lei que vão de encontro com a homoafetividade
desde meados da década de 90, e Garapon fala que o maior controle do juiz é
consequência direta do que abrimos mão em prol da liberdade, Maus já acredita
que “quando a Justiça
ascende ela própria à condição de mais alta instância moral da sociedade, passa
a escapar de qualquer mecanismo de controle social – controle ao qual
normalmente se deve subordinar toda instituição do Estado em uma forma de
organização política democrática”. No entendimento dos diversos ministros, o
ativismo foi a última situação encontrada para o caso, pois os direitos
fundamentais de cidadãos brasileiros estavam sendo desrespeitados e sonegados
há muito tempo e eles mereciam um maior reconhecimento.
Dessa forma, a magistratura do sujeito,
isto é, buscar a efetivação de direitos através do poder judiciário, torna-se uma
tarefa política primordial para a realização de metas, já que, se pela via
jurídica já é complicado atingir esses objetivos, por outros meios seria ainda
mais complexo. Nessa perspectiva, não há uma antecipação de direitos, há um
aprofundamento da democracia na medida que normas que já deveriam abranger os
casais homossexuais só foram devidamente tuteladas dessa forma, o que já teria
de ter sido feito há muito tempo.
Com base no analisado, a decisão da ADI 4277 foi mais do que importante para o avanço democrático no Brasil. Os efeitos desse julgamento transcenderam a união homoafetiva e diversos institutos foram abertos, como a conversão da união estável em casamento ou até o casamento direto por assim dizer. Logo, o julgado trouxe evoluções essenciais para essa comunidade que sofre, tanto com o preconceito comumente, quanto com os impedimentos para se chegar à concretude de direitos já garantidos para os heteronormativos, por mais que não haja palpável diferença entre estes.
Núbia Quaiato Bezerra, Direito noturno