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quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

O aborto de anencéfalos na perspectiva de Bourdieu

O Supremo Tribunal Federal (STF), em 2012, votou uma importante questão que envolve a vida humana e mobilizou diversos setores sociais: a descriminalização do aborto de anencéfalos. A anencefalia consiste na má-formação do cérebro e do córtex do feto, restando apenas um “resíduo” do tronco encefálico. Assim, o feto pode sobreviver durante todo o período gestacional, mas sem muita expectativa de vida no ambiente exterior ao corpo da mãe, pois, segundo dados da Confederação Nacional dos Trabalhadores (CNTS), 65% dos fetos anencéfalos morrem ainda dentro do útero, embora haja a possibilidade de sobreviverem somente algumas horas e, no máximo, poucos dias.
No julgamento, foi decidido que, em caso de anencefalia, a realização do aborto é permitida, assim como quando a gestação é consequência de estupro ou apresenta riscos à vida da mulher. Em outros casos, o aborto voluntário é descrito como crime, com punição prevista no Código Penal de reclusão de um a três anos para a gestante e de um a quatro anos para o profissional, mesmo que a gestante consinta.
Se a gestante optar pelo aborto, pode solicitar o serviço do Sistema Único de Saúde (SUS), sem necessidade de autorização judicial. Os médicos que realizarem o processo não estarão sujeitos à acusação penal, visto a legalização no referido caso.
Ao fazer uma análise da questão apresentada sob a perspectiva sociológica de Pierre Bourdieu, há de se remeter a determinados conceitos que ele expõe em sua obra.  Um desses conceitos é o que Bourdieu concebe como campo. Os campos correspondem, portanto, aos espaços simbólicos autônomos, que têm características muito próprias. Outro conceito que se relaciona ao mencionado é o de habitus, que se refere a uma matriz estabelecida em função da posição que o indivíduo ocupa na sociedade, que conduz seus modos de pensar e agir. Dessa forma, na questão da descriminalização do aborto de anencéfalos, nota-se a colisão de dois campos, com seus respectivos habitus: o campo religioso e o campo do Direito.
As instituições religiosas brasileiras, em sua maioria, condenam a prática do aborto por considerarem-no pecado, alegando defender a vida do nascituro e sendo inflexíveis quanto à possibilidade de descriminalizá-lo. Esse tipo de pensamento é fundamentado em uma moral religiosa, que instiga o comportamento e as ações dos indivíduos inseridos no campo religioso. O campo do Direito, por sua vez, acaba por dialogar com outras áreas do conhecimento e procura engendrar a lógica positiva da ética e a lógica positiva da moral, as quais têm suas estruturas por ele reguladas. Além disso, é importante que, ao procurar solucionar certas questões, como a apresentada, o campo jurídico se afaste do instrumentalismo, a fim de não favorecer as classes dominantes, e do formalismo, através do qual o Direito pode agir como força autônoma diante das pressões sociais.
Por fim, é adequado que o Direito se fundamente na realidade para satisfazer as demandas da sociedade, visto que regula a vida social e política dos cidadãos por meio de instrumentos normativos. No caso do aborto, o âmbito jurídico levou em conta o caráter laico do Estado, o direito da mulher de escolher por prosseguir ou não com a gravidez e o fato das reduzidas expectativas de vida do nascituro, que serviram de argumento para que a decisão fosse deferida.

Bianca Carolina Soares de Melo – 1º ano de Direito - Noturno

Bourdieu e a ADPF 54

 A ADPF 54 garantiu, no Brasil, o aborto de feto anencéfalo. A decisão do STF não descriminaliza o aborto, bem como não cria nenhuma exceção ao ato criminoso previsto no código penal brasileiro, a ADPF 54 decidiu, porém, que não deve ser considerado como aborto a interrupção terapêutica induzida da gravidez de um feto anencéfalo.
Bourdieu afirma, que o campo jurídico possui uma autonomia relativa, os diversos campos (científico, cultural, politico, religiosos, entre outros) sofrem influência uns dos outros.  O autor foca no campo jurídico que possui um vocabulário próprio, perspectivas próprias, o que o distinguiria dos demais campos. Bourdieu afirma que não deve ocorrer um isolamento do campo jurídico do Direito em detrimento dos demais, é necessário que ele esteja a serviço da sociedade integrando-se aos demais campos.
Bourdieu assemelha-se a Marx ao analisar o Direito como peça fundamental para as classes dominantes, sendo muito improvável que as decisões no campo jurídico desfavoreçam as classes consideradas dominantes. Para Bourdieu é necessário evitar o formalismo (Para o formalismo, as comparações devem ser feitas entre as relações que caracterizam qualquer sociedade ou instituição, como, por exemplo, as relações entre marido e mulher ou entre patrão e empregado, e não entre sociedades globais, ou entre instituições de diferentes sociedades) e o instrumentalismo (teoria instrumentalista, que tem na figura de Karl Marx um dos seus principais expoentes, entende o direito somente como um reflexo das relações de força existentes na sociedade e, por extensão, como um instrumento de manutenção dos interesses da classe dominante).
Com Bourdieu, podemos analisar como o discurso jurídico se produz e age sobre os atores sociais, refletindo, principalmente, sobre diversos problemas sociais presentes na atualidade. Bourdieu critica o formalismo por considerar o direito um sistema fechado, que se desenvolve historicamente em função da dinâmica interna de seus conceitos e métodos, independentemente do mundo social.
O instrumentalismo, por sua vez, é criticado por Bourdieu por conceber o direito e a ciência jurídica como uma expressão direta da determinação econômica e dos interesses dos grupos dominantes. Essa crítica visa particularmente a Althusser, que apesar de ter reconhecido a autonomia relativa do direito como “superestrutura” em relação à economia como “base”, não questiona a base social dessa autonomia, ou seja, as condições históricas nas quais surge um universo social autônomo, qual seja, o “campo jurídico”. Uma vez que o formalismo é representado sobretudo por juristas enquanto o instrumentalismo é representado sobretudo por sociólogos, a sociologia jurídica de Bourdieu, discutindo criticamente essas duas escolas de pensamento, torna-se uma possibilidade de superar a linha divisória entre o direito e sociologia.
  Guilherme Soares Chinelatto - 1º ano direito (noturno)


O sociólogo francês, Pierre Bourdieu, em sua obra propõe o entendimento da correlação de forças do campo jurídico através de uma sociologia jurídica. 

Ele foge da instrumentalização do Direito, feita por Kelsen, e também do formalismo de Marx. Segundo Bourdieu, o Direito, na verdade, é uma lógica dupla, fazendo-se pela junção tanto do formalismo com o instrumentalismo. Como resultado disso, haveria autonomia do juiz em relação a decisão feita, devendo recorrer aos princípios sociais para fazer isso, neutralidade e universalidade do Direito, sendo esses três conceitos a "própria expressão de todo funcionamento do campo jurídico e, em especial, do trabalho de racionalização". 

A neutralidade do juiz, entretanto, fica em jogo em situações como o do julgado exposto. 

De um lado, as mulheres que possuem filhos anencéfalos, que podem vir a falecer logo após o parto, causando enorme impacto psicológico negativo nelas. De outro, os princípios, como o direito a vida, garantidos pela Constituição Federal. Com a decisão de permitir o aborto de anencéfalos. o STF, visando o bem comum, vai contra o consenso geral da população brasileira, que é contra a legalização do aborto, quebrando a corrente em que a classe dominante sempre fosse favorecida, expressando a luta simbólica, que explicita muito o que é o Direito.  

Stella Cácia Bento Schiavom - 1º ano de Direito noturno
Bourdieu explora os conceitos de formalismo e instrumentalismo de forma convicta durante seu pensamento. Sob sua concepção, formalismo seria o entendimento do direito como uma força autônoma diante dos demais aspectos da sociedade e das pressões sociais, ou seja, é a ideia do direito como algo independente e não abalável pelos fatores externos. O instrumentalismo, por sua vez, seria o ato de servir-se do direito em prol de uma classe dominante, como forma de atender a privilégios de certa camada imperante da sociedade. Assim, o pensador dá continuidade a este viés lógico embasando-se em termos como campo e poder simbólico, os quais seriam, respectivamente, espaço onde interesses específicos são defendidos e os instrumentos de adequação para que interesses sejam tidos como relevantes dentro do campo.
Desta forma, aprofunda sua análise aplicando-a no âmbito do direito: afirma que o campo jurídico é dotado de seu poder simbólico próprio, seja por atos peculiares do sistema ou pela linguagem rebuscada e característica. Tendo em vista tais concepções, é possível presumir que mesmo tratando-se de um sistema fechado e que exige certos requisitos para aceitação de novos elementos, é possível a atribuição do conceito de autonomia relativa, o qual implica que mesmo que o direito seja regido e embasado por suas próprias normas, por vezes atende a demandas externas a seu sistema.
Ao analisar as contribuições fornecidas por Bourdieu e na tentativa de aplicá-las a um caso prático, toma-se como proveitoso o exemplo da ADPF 54, que garantiu a descriminalização do aborto em caso de anencefalia fetal no Brasil. Haja vista a proibição de se abortar no país e todo ordenamento rígido e inflexível que cerceia tal prática, a exceção no caso dos anencéfalos pode ser vista como quebra do formalismo da norma. Melhor dizendo, o fato da decisão ter optado por flexibilizar - mesmo que minimamente - o ordenamento jurídico demonstra indireta e sutilmente que este não se portou tão intransigentemente: o formalismo deu espaço para questões além da norma positivada. A decisão pautou-se em questões de direito de liberdade, saúde, direito das mulheres e outras questões.  Assim, mesmo que de maneira tímida, a singela ruptura do engessamento normativo se torna preceito para que outras demandas sociais acreditem na possibilidade de reforma da lei em prol de direitos humanos, numa expectativa de realidade na qual os princípios normativos estejam em concordância com os direitos e princípios fundamentais.

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Bourdieu e o direito ajustado à sociedade

 Em “O Poder Simbólico”, Pierre Bourdieu expõe que a arte, a religião, a língua e outras ferramentas são continuamente utilizadas para designar condutas e que os instrumentos simbólicos são mecanismos de dominação. Ao nos voltarmos para o julgado que trata do aborto de anencéfalos julgado pelo Supremo Tribunal Federal a partir da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), seguindo esse pensamento do autor, podemos entender que os argumentos contrários a esse tipo de aborto são dotados de preceitos simbólicos.
Apesar disso, Bourdieu constata que o direito não deve ser isolado das demais ciências, visto que a colaboração de outras áreas do conhecimento é vital para o seu melhor funcionamento. Assim, obrigar mulheres a darem à luz a bebês anencéfalos não apenas representa uma violação de direitos humanos, uma vez que a sua liberdade está sendo cerceada quando se bloqueia a autonomia da vontade, mas também seria interpretar o Direito em discordância com sua casuística, ignorando o conhecimento de outras áreas científicas como da medicina, da psicologia e da sociologia. Logo, quando associamos, por exemplo, o que dizem médicos especialistas no caso dos fetos anencéfalos, facilita-se a tomada da decisão mais justa possível.
De fato, este julgado foi considerado improcedente e a permissão judicial para o aborto de fetos anencéfalos foi concedida, evitando, assim, mortes de mulheres que tentavam realizar abortos clandestinos, além sofrimento físico e desgaste psicológico, dentre outros.

Dessa forma, ainda segundo Bourdieu, é função dos juristas conectar e adequar a teoria do Direito à sociedade, moldando-se de acordo com as mudanças sofridas pela mesma, e suprindo suas necessidades. Assim, a descriminalização do aborto de anencéfalos pelo Supremo Tribunal Federal, é um exemplo de como os juristas, devem fazer um direito  formal, incluindo as necessidades materiais dos cidadãos.
José Eugênio da Silva Mendes - 1º ano direito diurno

Bourdieu e as conquistas sociais

A ADPF 54, requerida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, queria declarar inconstitucional a interpretação de que o aborto de fetos anencéfalos constitui crime segundo os artigos 124, 126 e 128, incisos I e II do Código Penal. Para isso, baseou-se na laicidade do Estado brasileiro, além de argumentos de acordo com a medicina.
Nesse caso, sob a ótica de Bourdieu, pode-se perceber a validade de sua teoria na realidade. O Direito, apesar de possuir autonomia, não é imune às pressões sociais, como dizia Kelsen. Menos ainda fadado a ser instrumento de dominação da classe dominante, como afirmava Marx. Para Bourdieu, são elementos externos que colocam as pautas a serem decididas pelo Direito, logo, o direito é, definitivamente, afetado por pressões sociais.
Ele ainda afirma que o direito deve se afastar do instrumentalismo (direito como um utensílio ao serviço dos dominantes). O caráter moral pregado pela classe dominante e visto por Bourdieu como uma das forças reguladoras do sistema jurídico, é predominante no legislativo brasileiro, mas, no entanto, a ADPF foi julgada procedente e a maioria conservadora brasileira não venceu desta vez. Com isso, conclui-se que é possível o Direito ser instrumento dos movimentos sociais também.
Dessa forma, a procedência da ADPF 54 foi um primeiro passo – importante - para alcançar-se o proposto pela teoria de Bourdieu. As esperanças são muitas, em vista da visibilidade e força que os movimentos feministas têm ganhado, alçando conquistas, de pouco em pouco. Na última semana, uma decisão do STF quanto à descriminalização do aborto ilustra esse avanço, na contramão da corrente conservadora do país.


Maria Eduarda T. S. Léo - Diurno 

O aborto em casos de anencefalia: a aproximação do STF com Pierre Bordieu

O julgado da ADPF 54, que aprovou a descriminalização do aborto de anencéfalos no Brasil, está claramente em ressonância com as ideias de Pierre Bordieu. Isso ocorre pois ao aprovar a descriminalização desse ato (aborto), o Direito aparece como uma força que está indo de modo contrário à ideologia da classe dominante, burguês e cristã. Ou seja, demonstra que a decisão em questão está se opondo ao instrumentalismo. Outro ponto importante a ressaltar é que esse julgado refere-se uma ideia de oposição ao formalismo, defendido por Kelsen, sobre o qual o Direito seria uma força autonôma diante das pressões sociais. Ora, se o Direito é fruto de um pacto social, ele deve também ceder às demandas de um grupo que se sente com pouca representação; caso das mulheres que sofrem de forma trágica com a gravidez de um ser basicamente natimorto (o anencéfalo).

A ADPF 54 reflete a junção e a dinâmica do Direito com a moral, ou seja, a ‘’fusão’’ da lógica com a ética, que precisam permanecer em certo equilíbrio para a plena utilidade e funcionamento das ciências jurídicas. Afinal, usando-se da lógica, por que deixar uma mulher sofrer ou até ir a óbito por causa de um ser humano que basicamente não tem chances de vida? Por que deixar dois seres humanos morrerem (a mãe e o anencéfalo), se podemos salvar uma das vidas? No campo da ética e da moral, devemos nos perguntar: é certo que ignoremos o sofrimento gigantesco de uma mãe que é obrigada a arriscar sua vida para parir um humano que não viverá? Portanto, o Direito, segundo Pierre Bordieu, não pode pautar sua análise em uma mera interpretação das estruturas materiais, econômicas e sociais, e nem na valorização pura do aspecto formal das normas, mas sim realizar uma junção das estruturas com a formalidade, que parece ser o método que o STF empregou ao modificar a lei do aborto pois ela seria de certa forma incompatível com o estabelecido pela Constituição e os direitos presentes em seu texto.

Nessa decisão do STF, é claramente percebido que os juízes interpretaram o Direito não como uma ciência autônoma, longe das influências de outras áreas, mas como uma área fruto da sociedade e à serviço dela. Assim, através da judicialização e ao atender as demandas de uma minoria que até pouco tempo não tinha voz dentro do sistema patriarcal , os juízes mostram que o Judiciário está aberto à ética e à moral desse grupo e isso reflete um sentimento de empatia com aqueles que há muito tempo sofrem em silêncio.


André Luís de Souza Júnior - 1º Ano Direito Noturno

A crítica de Bourdieu e a crítica à Bourdieu

Pierre Bourdieu, com sua amálgama de bases sociológicas, antropológicas e filosóficas, estrutura uma nova crítica otimizada para as sutilezas da realidade social e humana, pois essa síntese sistemática supostamente funde estruturas intelectuais que captam, sozinhas, diferentes níveis da realidade — uma vez que se atraca à todos os níveis — pois as análises autocentradas de cada qual confeririam concordância, conveniência e conformidade com seus próprios preceitos, em detrimento de uma percepção mais próxima do Todo.
Bourdieu acredita no poder simbólico, uma vez que parte do dinâmico é estrutural e parte do estrutural é dinâmico em seu estruturalismo construtivista e nesse aspecto o Direito é um subssistema simbólico predominantemente autorreferente (isto é, com relativa autonomia em relação às forças substânciais e seus influxos) mas também aberto e afetável pela exterioridade econômica, política, social e cultural. Daí podemos notar que as transformações da ciência, da sociedade e da ética em diversos momentos amoldaram transformações no Direito, sendo as tradições engendramentos (das circunstâncias remotas no passado) em si mesmas, a despeito da sua consagração simbólica interna. A natureza histórica do Direito, explicada ponderadamente por Bourdieu, parece justificar que ele seja tratado como mais adaptável às mudanças, o que é sacrílego para os legalistas.
 Apesar dessa proposta ser tipicamente desmistificadora como as dos cientistas sociais em geral, Bourdieu em seu entendimento é muito questionado sobre seu caráter teórico de expressão vaga e não-científica em virtude de* seus problemas materiais e formais. Assim podemos concluir que embora com Marx, Bourdieu é passível de não ser um crítico social com o sistemático rigor de Marx em razão dos questionamentos objetores se pautarem em exigências metodológico-científicas e de coesão lógico-abstrata com os detalhamentos das teorias convertidas — e ditas como que misturadas apressadamente.  


Fabio César Barbosa, 1º Dir/ Noturno 

Das permeases jurídicas

Pierre Bourdieu, renomado sociólogo francês, discorre sobre a existência de um poder simbólico em diversos campos da sociedade, sendo esses capazes de influenciar ideais e concepções e interferir nos acontecimentos.  Segundo esse pensador, o Direito seria um desses campos, cuja estrutura detém tanto autonomia relativa quanto uma hierarquia preestabelecida. Bordieu critica diretamente a “teoria autopoiética do Direito” e frisa que este não consiste em um sistema isolado autônomo, mas sim em um plano permeável às pressões externas e sujeito as mudanças recíprocas com o tecido social.

Ao analisarmos a ADPF 54, que garantiu a descriminalização do aborto em caso de anencefalia fetal no Brasil, sob a perspectiva bourdieuista , pode-se inferir que a partir do momento em que ministros de diferentes habitus decidem por votar a favor dessa medida, há então o exercício da autonomia relativa do Direito. Nesse conceito, as determinações jurídicas são frutos do social e do formal, e os operadores e doutrinadores  são responsáveis por utilizar da estrutura formal para suprir as demandas da sociedade. À medida que os tempos evoluem, e tem-se difundida a ideia de que obrigar uma mulher a conduzir gestação de um ser incapaz de estabelecer vida extrauterina é  uma afronta à dignidade da pessoa humana, surge então a necessidade do judiciário tutelar o sofrimento dos indivíduos. É sobre essa esfera que reside a legitimidade da decisão, e faz-se necessário reinterpretar a formalidade a fim de promover a historicização da norma para a atualidade.

Dessa forma, Bourdieu defende a acepção do Direito não só como ciência, mas também como moral. Essa ideia pressupõe a interação dialética entre uma lógica positiva científica e uma lógica normativa moralista, e como as alterações no tecido social caracterizam a síntese dessa coexistência epistemológica. Por mais que o ordenamento jurídico esteja preso diretamente a concepção de Supremacia Constitucional, o caráter dual apresentado permite que a mulher adquira o direito de não gerar um filho sem vida. Assim, por meio dessa relação, torna-se possível superar o formal e recair sobre o efeito universalizante apontado pelo autor, que abre espaço para a aceitação da realidade ao invés de simulacros, e se preocupa não com o que deveria ser, mas sim, com o que é: a mulher tem o direito de escolha!

Bruno Medinilla de Castilho - Direito Matutino (1o  ano)

O Direito entre a fortuna e a virtù

        Ternos. Gravatas. Togas. Vossa senhoria. Meritíssimo. Excelentíssimo. Há uma série de figuras associadas ao direito e nisso está o seu grande poder simbólico, que rege as condutas sociais e as perspectivas normativas. À margem de toda essa estrutura hierárquica estão as forças externas, a própria sociedade regida por seus conflitos e que traz a tona discussões das mais variadas, muitas vezes cercadas por valores advindos da igreja, da família e da educação. A discussão do aborto ainda é um tema muito polêmico que envolve tais valores. Apesar de ainda ser crime e ainda recentemente estar sendo divulgado e discutido em redes sociais, e na mídia, o aborto entrou em cena no campo jurídico em 2012, sendo abordada pelo STF a questão em relação aos anencéfalos. O aborto de anencéfalos foi então permitido após esse ano, por meio da judicialização.
        Bourdieu vai comentar sobre tal poder simbólico do direito e também a necessidade de romper com as noções simplistas sobre o tema, superando a questão do formalismo, que deixa de lado a esfera social e do instrumentalismo, que prevê o direito como intrumento de dominação. Ao criticar Kelsen, Marx e Luhmann, ele nega o direito como opressão, ressaltando a questão da moral e do direito sob influência das relações externas, denominada por ele autonomia relativa, a relação entre a sociedade e os magistrados. Então, para se ter um direito garantido, como na permissão do aborto de anencéfalos, Bourdieu trata sobre os operadores do direito, magistrados que lideram na prática essa atividade.
         A decisão tomada pelo STF, que envolveu a questão dos direitos humanos, direitos da mulher, direito a liberdade, a saúde,entre outros, foi parte desse processo do magistrado com a sociedade, incorporando as demandas externas e as legitimando na forma do direito, dentro do espaços dos possíveis, espaço no qual as interpretações ocorrem dentro do campo jurídico. Essa decisão prova também a importância da quebra ao formalismo e o instrumentalismo nesse espaço. Ademais, tal decisão traz a retórica da autonomia e universalidade citadas pelo autor como expressões do campo jurídico que irão então eleger a legitimidade para fora dele.
         Em suma, vale ressaltar conceitos como a autonomia relativa e o espaço dos possíveis para a dinâmica do direito, considerando dentro disso as demandas da sociedade e o poder simbólico. Nesse sentido, se encaixam, analogamente, os conceitos trabalhados por Maquiavel na obra O Príncipe: a fortuna e a virtù. Sendo a fortuna, todos os acontecimentos externos que ocorrem a um indivíduo, a virtù será sua capacidade de filtra-las para o seu próprio beneficio.Assim, sendo as demandas sociais a fortuna do direito, cabe aos seus operadores utilizar-se da virtù para atendê-las e garantir o bem comum.

Gabriela Guesso Pereira
1º ano Direito diurno

Necessidade de expansão do espaço dos possíveis

Pierre Bourdieu discorre sobre alguns conceitos que podem ser relacionados ao campo jurídico. Começando pelo próprio conceito de Campo para o sociólogo, o qual seria um espaço constituído por autonomia de valores, códigos de linguagem e “habitus” (valores trazidos pelos atores que habitam o campo jurídico) específicos, possuindo recursos específicos (recursos institucionais, pessoais, por exemplo, a linguagem jurídica), capital simbólico (recursos que você possui e que, numa dinâmica de concorrência permanente, você consegue alguma distinção dentro da sociedade por possuir este capital simbólico). Para Bourdieu, esses elementos são inerentes a vida social em cada campo específico, os quais trazem certa autonomia para cada espaço.
A ciência rigorosa do Direito, que o toma como objeto de estudo, deve evitar o instrumentalismo (ideia de Direito a serviço da classe dominante), assim como o formalismo (entendimento do Direito como força autônoma diante das pressões sociais).  Tal pensamento de Bourdieu conduz á uma crítica a Kelsen, tendo em vista que o direito não é a autonomia absoluta do pensamento da ação jurídica. As pessoas trazem seus habitus externo (correlação de forças externas) ao campo jurídico no momento de aplicação e utilização do Direito. Para Kelsen, este campo é fechado, não sofre outras influências a não ser as relacionadas ao campo jurídico.
         O direito retira das estruturas de poder internas a linguagem pela qual seus conflitos se expressam, todavia, não é esse o princípio de sua transformação: o direito retira da sua linguagem própria aquilo que remete a transformação. Exemplomudança do aspecto legal do aborto: retira da linguagem sua lógica interna, o que acontece de fora oferece, pelo menos, um impacto mínimo a essa mudança; a linguagem que põe em prática a transformação vem do campo jurídico, no entanto, essa transformação é externa a esse campo. Ilusão de independência do Direito em face das relações de forças externas: Corpus jurídico expressa o estado destas relações. A dinâmica do direito engendra a “lógica positiva da ciência” (aquilo que representa a razão - lógica) e a “lógica normativa da moral” (influências externas; o que é justo - ética), reguladas estruturalmente na concorrência no âmbito desse campo. O Direito deve ser enxergado pela sociedade como algo universal. Os limites às interpretações no âmbito do campo jurídico estão condicionados pela própria definição do “espaço dos possíveis”, o qual encontra-se no território entre a razão e a moral, local onde se perpetuam os conflitos. A própria hierarquia do campo inibe divergências profundas, e a interpretação se dá por meio de uma forma regulada no campo jurídico e não de uma forma de quebra de paradigmas. O Ethos(visões de mundo compartilhadas) compartilhados explica a expressão dos valores dominantes no âmbito do campo. Por isso, para Bourdieu, configura-se a pouca probabilidade de desfavorecimento dos dominantes. Aquilo que se traz de fora deve ser interpretado pelo campo,bem como ser aceito, devem existir lutas simbólicas dentro do campo jurídico, mas sem abandonar o seu habitus. Tais lutas não vão contra o direito, vão contra determinada posição dentro do direito.
             No que diz respeito a ADPF/54, a qual trata da questão do aborto de fetos anencéfalos, é possível estabelecer relações com as teorias de Bourdieu. É possível dizer que há, neste caso prático proporcionado pela ADPF, uma confusão entre as funções de doutrinador e operador do direito. Relacionando com o fenômeno da judicialização, sobre o qual trata Barroso, quando o Legislativo não se manifesta, é necessário que o Judiciário avance sobre determinados anseios sociais, de modo que, como no caso apresentado, os ministros do STF não só adequaram uma norma à realidade, mas sim criaram uma nova norma. Vivemos, até hoje, em uma sociedade patriarcal, a qual trata o aborto de fetos anencefálicos – e o aborto de modo geral – dentro do espaço dos possíveis sobre o qual discorre Bourdieu, restringindo esta decisão a uma minoria que domina o poder. A decisão da ADPF/54 de aprovar o aborto em caso de fetos anéncefalos demonstra que o direito pode – e deve – se adaptar de acordo com as mudanças e reivindicações sociais. O direito, como evidencia Bourdieu, deve se constituir de um fato da realidade, sendo um reflexo da sociedade na qual está inserido. Ainda há muito a ser feito para que haja uma expansão do espaço dos possíveis e, assim, existir um direito verdadeiramente universalizante.

Carolina Pelho Junqueira de Barros - Direito Diurno

Bourdieu: entre duas teorias

Em linhas gerais, a doutrina de Bourdieu traz duas críticas importantíssimas: uma delas refere-se ao estruturalismo marxista, enquanto a segunda recai sobre o positivismo kelseniano. Neste diapasão, Bourdieu propõe o entendimento do Direito livre de concepções tanto formalistas quanto instrumentalistas. Ao almejar o equilíbrio entre estes dois preceitos, Pierre Bourdieu surge com ideologia totalmente nova para a percepção do Direito.

Esta linha de raciocínio mostra-se patente na discussão acerca do aborto de anencéfalos. Neste caso, o poder Judiciário atua seguindo o equilíbrio: não executa ao máximo a potência formal da norma, assim como não serve apenas de instrumento de dominação de determinada classe. Ora, partindo do pressuposto de que, estando a cargo das classes dominantes, o Direito teria caráter conservador, dificilmente seria aferida a decisão de autorizar a interrupção de feto anencéfalo.

Ademais, perpassando a questão do formalismo jurídico, a questão atinge outros níveis que não o do Direito (há participação da sociedade, da medicina etc). Dessa forma, rompe-se com a noção de que o Direito seria restrito apenas ao âmbito jurídico.

Portanto, é de suma relevância a concepção de Direito estabelecida por Bourdieu. Com isso, pode-se traçar a ideia do campo jurídico como algo trespassado por diversas outras áreas. Dessa forma, como que engrenagens, cada uma destas áreas movimenta a outra, gerando (ou tentando gerar) avanços nos mais diversos campos.

Entre a lógica e a ética

Bourdieu, em sua escrita, ao tratar do campo jurídico faz uma critica a Kelsen e aos marxistas estruturalistas, segundo ele o Direito deveria evitar formalismos e instrumentalismos, ou seja, o Direito não deveria estar a serviço de uma classe dominante, e nem deveria ceder as pressões sociais, deveria ser autônomo a elas, pois assim, poderia se ter uma analise mais justa dos casos, pois o Direito trabalharia não para quem tivesse mais poder, mas sim para quem fosse o detentor dos reais direitos. 

Além disso, o escritor coloca que o Direito deveria atender a necessidades simultaneamente logicas e éticas, teria que atender a lógica positiva da ciência junto com a lógica normativa da moral, pois de nada adiantaria o Direito se voltar completamente cientifico e esquecer a ética social, pois assim ele não teria nenhuma utilidade, pois não levaria em questão as necessidades da sociedade na qual ele está inserido. E, nesse mesmo pensamento, Bourdieu ainda falava que o Direito não deveria trabalhar sozinho, pois, para ele as diversas áreas do conhecimento deveriam dialogar, ou seja, em casos como o aborto de bebes anencéfalos não bastaria apenas uma analise jurídica sobre o caso, pois, também é necessário que haja uma analise no âmbito das ciências biológicas, sociológicas, entre outras, pois assim pode-se atender melhor ao que ele coloca como as necessidades logicas e éticas, pois cada ciência traz um olhar sobre um mesmo tema, e com a junção de conhecimentos fica mais plausível o caminho a ser tomado. 

Com isso, pode-se analisar melhor a questão discutida pelo Supremo Tribunal Federal em 2012, a ADFP 54, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, que tratava da inconstitucionalidade da criminalização do aborto de bebes anencéfalos, a qual foi aprovada e pode-se abortar bebes que sofriam de anencefalia. Contudo, um caso como esse olhado apenas pelo âmbito jurídico passa a se distanciar do real problema, pois juízes, advogados, operadores do direito possuem um conhecimento cientifico limitado, o que não torna possível, na maioria das vezes, que ética a lógica sejam respeitas, por isso se faz necessário um estudo mais aprofundado não apenas do caso concreto em si, mas sim de toda a realidade que envolve determinada questão, pois, dessa forma, as decisões tomadas podem correr menor risco de favorecer um determinado grupo, e passam a atender a sociedade como um todo.  

Aluna: Pietra Bavaresco Barros - 1° ano Direito Diurno 

Decisão: dignidade


As correntes ainda persistem
No corpo feminino,
Na boca feminina,
No “ser” feminino.

A maternidade é puro romance.
Mãe, filho, quarto azul ou cor-de-rosa.
Mas a mãe jovem, a mãe periférica
Não está nos comerciais de margarina.

Está nos becos, nas ruas
Na casa da família tradicional brasileira
de vassoura e uniforme.
Está no desconhecido.
E na falta de acessos aos métodos
CONTRACEPTIVOS.

Está em uma vida de abusos.
Uma vida à margem.
A vulnerabilidade social.

A menina ficou grávida.
O garoto correu.
“esse filho não é meu”
Da mãe a obrigação de parir.
A obrigação de cuidar.
“Alguns reais” da pensão para criar um “ser”.

Abortar? Jamais.
É uma vida inocente.
“Mãe, sua inconsequente! ”

Depois, quem pariu que embale.
Quem trepou que engula.
Ainda que a criança tenha pouco pra engolir.

A moral e a questão.
Aborto e prisão.
Justiça, juízes, ação.
Aborto de um ser sem cérebro.
O falido nascimento.
O natimorto que sai do corpo e faz sofrer.
A cara de um filho, o berço do filho.
“ arrumar o quarto do filho que já morreu”
Um pedaço de ti, metade afastada de ti.
Leva teus sinais.
Vitais.

Um direito além das classes.
Um direito além da norma.
“A  mão formal e instituída do Estado
absorve e transforma a realidade”
Um direito híbrido.
Tatuagem no punho do Estado:
Universalidade + Impessoalidade + Neutralidade.

Um avanço, uma decisão.
A norma diz: crime.
A decisão diz: dignidade.
Mas até quando os corpos que não são nossos,
pela moral que não é de todo mundo,
Não deve ser de todo mundo,
Serão limitados?
Marcados pela imposição do “sair”
Marcados pela imposição do cuidar.
Acima de tudo. Acima de todos.
As manchetes apontam a incoerente tese:
“Pela vida”
“Pela pena de morte, redução da maioridade penal”

REVOLUÇÂO
Afinal,
Nem só de Reformismo viverá homem (e a mulher).

 José Eduardo Adami, 1º ano Direito (noturno) 



Bourdieu, a flexibilidade do direito e o aborto

A questão do direito ao corpo, em especial o feminino, é cara para a sociedade brasileira e seu sistema jurídico. O debate sobre a interrupção cirúrgica da gravidez de risco ou indesejada é bastante delicado em um país de bases morais patriarcais. Todo o ônus da matéria cai sobre a mulher que pratica o aborto, que tem sua moral, integridade e caráter a todo momento questionados. O ordenamento jurídico brasileiro age no sentido da culpabilização e criminalização da mulher que pratica a interrupção da gravidez.

O contornos da questão do aborto no Brasil são ainda mais sensíveis. Enquanto o poder público se escusa de empenhar políticas qualificadas para garantir a integridade da mulher que deseja interromper a gravidez, duas situações distintas se configuram: as mulheres ricas recorrem à qualificadas clínicas, muitas vezes no exterior; as pobres e trabalhadoras são obrigadas a se submeter a procedimentos de risco em clínicas clandestinas e insalubres. O aborto é o quinto maior causador de mortes maternas no Brasil. A mulher pobre, quando não morre na clínica clandestina, sofre sanção penal, podendo sofrer pena de reclusão de até 10 anos.

O aborto está intimamente ligado à questão do direito ao corpo e a autonomia feminina. Não deve a sociedade, muito menos o ordenamento jurídico, imprimir limitações à liberdade do corpo. A mulher que não se sente confortável ou não tem condição para criar um filho não pode ser obrigada a fazê-lo, assumir o encargo de todo o processo. Mais absurdo ainda é que o direito haja expressamente de encontro com a criminalização da condição feminina.

Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal protagonizou destacadas e pontuais decisões progressivas em relação à interrupção da gravidez. No ano de 2012, o Supremo Tribunal Federal discutiu a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADFP) 54, que reivindicava a inconstitucionalidade da criminalização do aborto de fetos anencéfalos, e tomou decisão favorável à interrupção da gravidez. No final do mês de novembro passado, a Primeira Turma do STF firmou entendimento contrário à criminalização da interrupção da gravidez nos primeiros três meses de gestação.

Pierre Bourdieu, sociólogo francês, em seu texto "O Poder Simbólico", critica as correntes marxista-estruturalista e kelseniana-positivista de estudo do direito. Defende que a análise do direito não deve ser centrada nem somente na observação das estruturas econômicas, sociais e materiais, tampouco na supremacia da norma formal, mas a partir de uma combinação de ambas: um direito apegado às formalidades e instituições normativas e que seja capaz de absorver e corretamente intervir sobre a realidade material. Universalidade, impessoalidade e neutralidade seriam os princípios norteadores dassa concepção híbrida de análise e prática jurídica.

Quando os ministros do STF discutiam a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos, se deparavam com uma lei que expressamente tipificava a prática como crime. A norma, entretanto, estava em desconformidade com a situação social em sua materialidade: o nascimento de um bebê anencéfalo é um processo extremamente delicado e expõe tanto a mãe quanto o feto a grandes riscos de saúde; a anencefalia é ainda uma patologia letal, a expectativa de vida dos bebês anencéfalos é muito curta e o tratamento penoso. Nessa situação, o direito precisou se adaptar, editar sua apreciação normativa sobre a matéria da interrupção da gravidez para atender às condições materiais. Precisou o direito exercer seu flexibilidade, para conciliar o desacordo formal com a realidade material. Foi uma experiência de prática a proposta híbrida de Bourdieu.

Mas a tese de Bourdieu possui ainda algumas lacunas e falhas. Pode-se, por exemplo, apelar para a neutralidade e impessoalidade de um julgamento com sensível envolvimento moral, político, social e econômico? Tendo a decisão do Supremo indo de encontro com a reivindicação dos movimentos de defesa dos direitos da mulher e sendo 80% da população brasileira contrária a prática de interrupção da gravidez, pode-se falar em neutralidade e impessoalidade do sistema jurídico?

Deveria o direito agir para solucionar os conflitos humanos e assegurar a dignidade de todos os homens e mulheres. O sistema jurídico não pode se enclausurar em seu aparato normativo e ignorar a materialidade da condição humana. É dever dos operadores e pensadores do direito agir para superar contradições e conflitos sociais - a norma formal, por sua vez, vem a reboque, devendo se adaptar quando necessário.

Guilherme da Costa Aguiar Cortez - 2º semestre de Direito (matutino)

As limitações do campo e do habitus



Pierre Bourdieu, em sua obra “O Poder Simbólico”, trabalha o conceito de que a sociedade capitalista possui, de sua própria natureza, um rol de “campos”, que consistem em espaços de lutas simbólicas, dentro dos quais há enfrentamentos e competições, sendo que cada campo teria certa quantidade de autonomia. Exemplifica o autor que há o campo jurídico, o científico, cultural e o político, sendo que cada um deles possuiria o que Bourdieu chama de habitus – estes corresponderiam a padrões de conduta que incorporam-se ao indivíduo que faz parte de grupo social específico. Desta maneira, um campo poderia ser identificado por seu habitus.
Bourdieu realiza, então, uma análise crítica focada no campo do direito. Tal campo estaria repleto de problemas relacionados mormente a imposições dos grupos dominantes da sociedade, que utilizam de seu poder e influência para dificultar transformações realizadas no direito. Com efeito, o autor chama este fenômeno de instrumentalismo, que, portanto, nada mais é que o uso pleno do direito em prol dos grupos dominantes. Ademais, aponta-se também outro fenômeno, chamado de formalismo: este faz com que o direito seja analisado como força autônoma, alheia às pressões sociais e às demais áreas – ou campos. As impressões trazidas por uma visão formalista, portanto, aliadas ao instrumentalismo, mitigam ainda mais a possibilidade de modificações efetivas.
Além disso, o sociólogo versa sobre a concepção de “espaço dos possíveis”. Nesta, afirma que o campo do direito é caracterizado pela constante concorrência entre agentes competentes para gerar soluções jurídicas. Para Bourdieu, esse elemento causaria, como os supramencionados, entraves para o uso do direito e para resolver, efetivamente, problemas sociais pelos meios jurídicos.
Com tal panorama geral sobre as ideias de Bourdieu, é possível estabelecer-se relação entre estas e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, que autorizou a interrupção de gestação com feto anencéfalo. Para chegar à tal decisão e justifica-la, fundamentaram-se os Ministros do STF no princípio basilar de laicidade do Estado, bem como no fato de que o feto anencéfalo não possui qualquer expectativa de vida uma vez realizado o parto – ou seja, não se pode haver crime contra a vida em abortos nesta particular situação. Ademais, nota-se também um posicionamento do Tribunal em defesa da mulher, no que tange à proteção aos riscos, mormente psicológicos, que podem decorrer de uma gestação nesta situação. Em tal égide, são emblemáticas as palavras da Ministra Carmén Lúcia: “considerando que o feto não tem viabilidade fora do útero, deve-se proteger a mulher, que fica traumatizada com o insucesso da gestação”.
De fato, a ideia de formalismo, descrita por Bourdieu, representaria um empecilho significativo na solução desta questão da forma que foi realizada: o formalista considera o direito como um campo alheio aos outros, e notavelmente a decisão do STF não foi sedimentada exclusivamente no âmbito jurídico, mas utilizou-se também de insumos do campo da medicina e da psicologia, que permitiram a analisa extensiva do caso concreto.
A decisão do STF revela-se justa e humana, ao colocar em primeiro plano a mulher e não o feto sem quaisquer expectativas de sobrevida. Nota-se, então, que o pensamento da magistratura não deve nascer exclusivamente do direito, mas sim pautar-se em quantas distintas áreas forem necessárias, para que se possa almejar o bem comum – não se deve, portanto, manter-se atado aos habitus de seu campo.
Ademais, o julgamento também se relaciona com a concepção de instrumentalismo: as classes dominantes na sociedade brasileira tem caráter conservador, e, em termos de influência, é também cabível ressaltar a força das bancadas religiosas na esfera política e civil. De fato, o instrumentalismo do direito faria com que a decisão tomada fosse diametralmente oposta à que ocorreu, pois por opção das classes dominantes, seria vetado o aborto de anencéfalos. Mostra-se, novamente, a função do judiciário de utilizar o direito não como mero instrumento das classes dominantes, mas como meio de emancipação social, como preconizado, por exemplo, por Boaventura de Sousa Santos. 

Gabriel Cândido Vendrasco - Diurno