Na minha infância, ano de bandeira era ano de Copa. A cada quatro anos, era comum ver as cores verde, amarelo e azul decorando cada esquina e rua da cidade, em torcida e ansiedade. Foi somente recentemente que a bandeira nacional passou a ganhar um outro significado quando meus olhos a espiavam nas entradas de casas ou na antena do rádio de um carro. De certa forma, as cores vibrantes e as estrelas foram ofuscadas pelas palavras bordadas no meio, em letras pequenas, como um lembrete importante daqueles que exigem um olhar miúdo para serem lidos por inteiro. Quanto a serem entendidos, isso já é outra história, cheia de vários outros olhares.
Ordem e
progresso. Tal lema, além de bordar a faixa que corta o céu da bandeira
brasileira, também sintetiza de maneira simples os ideais pregados pela
doutrina positivista, desenvolvida pelo francês Augusto Comte, no século XIX. O
positivismo teve um grande impacto no processo de proclamação da República no
Brasil. Não é à toa que ele recebeu a honra de ter seu lema eternizado em meio às constelações dos nossos estados. Entretanto, é conveniente demais pregar palavras no céu,
jogá-las para o alto em discursos gritados e vazios, como também se tornou
comum ver no cotidiano político atual brasileiro. Palavras como essas, tão poderosas,
tão perseverantes ao longo do tempo, merecem ser tocadas, em todos os seus
significados, para que, então, possam ser compreendidas.
De acordo com Comte, a ordem seria um
pré-requisito para o progresso, sendo o positivismo, em sua concepção, a única
doutrina capaz de superar o predomínio teológico e dissolver um
‘’revolucionarismo insustentável’’ que inibiria o desenvolvimento humano. Para
que se possa tocar essa ideia, primeiro é preciso voltar no tempo, para uma
época distante e próxima de nós simultaneamente. Comte escreveu sua obra
‘’Discurso sobre o Espírito Positivo’’ durante o memorável período da Primavera
dos Povos, em que pensamentos liberais, nacionalistas e socialistas cruzaram-se
e misturaram-se em movimentos revolucionários por diversos países da Europa.
Era uma época de fervor, de mudança,
de revolução, mas, aos olhos do pai do positivismo, não de desenvolvimento. Não
havia ordem nesses movimentos. Pelo contrário, o espírito revolucionário
estaria perturbando a ordem e atrapalhando o progresso. Nessa linha de
pensamento já é possível notar que ‘’ordem’’ e ‘’progresso’’ possuem um sentido
único e permanente no positivismo. Eles significam manutenção da logística
social já estabelecida. São palavras para serem pregadas no céu, admiradas
e respeitadas de longe, sem serem tocadas ou transformadas. Porque o toque
envolveria o sentir, o que não é permitido em uma doutrina que visa criar uma física da sociedade, um ramo do saber que estude as características sociais
como se elas fossem regras de uma ciência exata.
Contudo é um tanto quanto ousado
ambicionar determinar o que poderia ser considerado progresso ou não,
estabelecer as mudanças que devem ser aceitas como válidas ou inválidas ao
desenvolvimento humano. A mudança não é algo que possa ser definido e muito
menos organizado, pois envolve a relação com aquilo que se é desconhecido até
certo ponto. Quando se muda de casa, não é possível dizer se esta foi uma
escolha razoável até que o indivíduo esteja bem acomodado no domicílio novo e
possa comparar a antiga residência e a nova com precisão. Mudanças são
processos de tentativa e erro não planejados e é exatamente o seu elemento de
espontaneidade que permite que elas partam dos seres humanos à medida que
pedem o uso de duas características essencialmente pertencentes à
humanidade: a imaginação e a ponderação. Barrar ou suprimir determinadas
mudanças, com a justificativa de que elas estariam rompendo com a ordem, é, por
si só, sabotar o progresso.
Portanto, o progresso ambicionado
pelo positivismo é um progresso regulado, domesticado, pré-definido. Se tal
pensamento não visa, necessariamente, a mudança de fato, já que a inibe através
da supressão do revolucionarismo, o que realmente se exige quando se fala de
progresso? A resposta para essa pergunta encontra-se naquilo que viria anterior
ao progresso e, isto é, a preservação da ordem. Os papéis de invertem: o
progresso, na verdade, serviria à ordem, permitindo que uma determinada
dinâmica social e série de costumes se mantivesse exatamente da maneira que se
encontra e navegasse por cima das novas dinâmicas, costumes e tentativas de
inversão do jogo social. Em outras palavras, a ordem prezada pela doutrina
positivista nada mais seria do que a tentativa do conservadorismo de se manter
vivo através da passagem do tempo. Ironicamente ou não, essa tentativa de se
conservar aquilo que constituiria a ordem nasce precisamente do que tal
doutrina visa evitar levar em consideração em suas estipulações: um sentimento,
mais especificadamente, o medo.
Medo por parte de um filósofo que
está testemunhando em primeira mão movimentos revolucionários que visam tirar o
monopólio do poder das mãos da classe social a que ele pertence e distribui-lo
entre outras classes, que não pode mais contar com as teorias filosóficas e a
palavra de Deus para explicar o ‘’caos’’ que o rodeia. Um medo que renasce continuamente
nas populações ao redor do mundo em tempos de crise, principalmente na brasileira, tendo ocupado
lugar central, por exemplo, no contexto do Golpe Militar de 1964, quando uma
suposta força crescente comunista estaria ameaçando os princípios da ordem
brasileira, dentre eles, a unidade da família tradicional e os valores morais
do ‘’cidadão de bem’’. Um medo que ainda se mostra presente nos dias de hoje,
nos discursos políticos exagerados, nas tentativas de silenciamento das
inúmeras e diversas vozes sociais que ganham espaço em um mundo mais conectado
e globalizado e na redução das suas ideias e pleitos à categoria de balbúrdia
ou subversão.
A mudança é assustadora, isso não é
irrazoável de se afirmar. A perspectiva de correr riscos, de ter que
desmantelar parte dos seus credos e valores em favor da afirmação de novos
credos e valores é alarmante. Por isso que a ideia de uma corrente sociológica
que incentiva a mudança, mas sem comprometer a ordem social vigente, que
produziria um progresso programado, é tão atraente para tantas pessoas.
Todavia, é essencial refletirmos, tanto como cidadãos, como seres humanos, se o
custo da manutenção da ordem compensaria todas as mudanças boas que poderiam
surgir de movimentos então tachados de ‘’subversivos’’.
É comum nos
deixarmos levar pelo brilho das promessas da ordem e do progresso e não
olharmos para o escuro do medo e do controle, que se solidifica entre as
estrelas. Sendo assim, é preciso sempre estarmos atentos, com os olhares miúdos
e aguçados às ideias que giram em nosso entorno, e pensarmos sobre elas em
sua magnitude, com todos os seus significados e implicações, sem receio de
encarar aquilo que se encontra no escuro. Afinal de contas, transformar o mundo não é tarefa para os covardes de mente e espírito.
Nome: Isabela Maria Valente Capato
RA: 221221468
Disciplina: Introdução à Sociologia
Primeiro ano de Direito - período matutino