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quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Um passo em uma luta

Ensina-se que o casamento é algo natural à vida humana civilizada, que a especulação capitalista é o que move o mundo e se regula, não há motivos para preocupação, que o patriarcalismo é quem cuida para que a sociedade não caia na imoralidade e na anarquia. Isso, segundo Pierre Bourdieu acontece devido à existência de uma violência simbólica exercida sobre as camadas populares, um poder que se encontra oculto, dissimulado, que persuade os entes da comunidade de forma a garantir a dominação, que, apesar de não palpável, exerce um poder simbólico, podendo se engendrar em verdadeiras ideologias quando tomados como coletivos. Daí há a abstração da importância de uma produção jurídica que não se prenda na ideia de um Direito como instrumento de uma classe dominante, assim como é necessário fugir da ideia deste como autônomo perante as pressões sociais. O Direito para Bourdieu é fruto de uma lógica duplamente determinada entre as relações de força próprias a ele que lhe conferem sua estrutura, ou seja, os conflitos que nele tem espaço e a produção doutrinária jurídica que delimita o espaço dos possíveis. Isto é, no campo jurídico estão em jogo lutas, uma vez que a hermenêutica é uma maneira de apropriação dessa força simbólica, bem como os conflitos próprios do Direito.
Um fato que ilustra muito bem essa situação é a decisão proferida pelo Ministro Barroso em relação à ADPF 54 permitindo a interrupção da gravidez em caso de gestação de anencéfalos. Essa decisão representa muito mais que um direito comum para as mulheres, representa o Direito como uma ferramenta que pode garantir a emancipação feminina em uma sociedade patriarcalista, um pequeno passo em meio a uma maratona para a conquista da igualdade de gênero. Representa um contragolpe ao feminicídio, uma vez que diminui, ou tem a pretensão de, o estigma relacionado ao aborto e da mulher que o pratica, pois as condições que levam uma mulher a tal prática, por vezes, são reflexos do descaso feito com a população feminina, bem como as consequências deste são degradantes para a mulher, que se motivo de exclusão por parte dos diversos segmentos da sociedade e tem seu psicológico abalado. Pela óptica de Bourdieu, esse quadro é um exemplo de historicização da norma, em que se passa do plano fático para o formal, adapta as fontes às novas circunstâncias, encontrando nelas possibilidades inéditas a serem exploradas. 
Porém, como posto anteriormente, toda produção jurídica é resultado de uma dinâmica dupla, assim, tem-se em trânsito, no legislativo, um Projeto de Emenda Constitucional que visa criminalizar o aborto em casos de estupro. Um imenso retrocesso protagonizado pelo patriarcalismo, notoriamente detentor de poder simbólico fortemente exercido na sociedade. Quadros como esse são novamente esclarecidos pelo pensador quando este diz que a afinidade dos interesses e as formações semelhantes favorecem a formação de uma visão alinhada de mundo, ou seja, diminui a probabilidade do desfavorecimento da ideologia dominante, isto é, o atual senário do poder legislativo brasileiro se mostra notoriamente alinhado à cultura patriarcalista conservadora, favorecendo sua propagação e maior enraizamento no Direito e cultura nacional. Daqui retiramos a definição de habitus para o francês, disposições incorporadas pelo indivíduo durante sua formação, atrelado ao seu campo, e as decisões proferidas pelo indivíduo estão, portanto, atrelados ao habitus. Na decisão referente à ADPF 54, por exemplo, ficou claro que até mesmo os ministros mais conservadores deixaram transparecer o habitus produzido a partir de uma perspectiva jurídica.
Por fim, há uma constante e imensa luta sendo travada no cenário jurídico nacional, notadamente travada entre a construção de um Direito baseado na crença de sua autonomia e a necessidade de adapta-lo a situações concretas. Os elementos que moldam o direito são claros e devem ser levados em conta no campo jurídico. O veredicto, o produto da luta simbólica travada no campo jurídico, deve corresponder a emancipação, emancipação contra aquelas forças que, dissimuladamente, embaçam a visão da comunidade em relação à sua situação sócio-jurídica, porém distante de formalismos e instrumentalismos.

Felipe Cardoso Scandiuzzi - 1ª ano - Direito Matutino  

Viver ≠ Existir

E alguns, dirão que nascer, se dá pelo simples fato de vir ao mundo.
Com muito respeito, direi que discordo.
Nascer pressupõe viver,
E viver, pressupõe campo para a sobrevivência,
Qual campo seria o da criança com anencefalia?
Como permanecer sem pensar em um mundo doente?
Talvez viver curtamente, mas não existir.
O formalismo aprisiona na forma,
O ideal de liberdade é prova disso.
Todavia, o espaço dos possíveis permitiu a hermenêutica avançar,
Graças a autonomia do Direito, mesmo que relativa,
O aborto para anencéfalos é garantido.
Tem-se uma fusão entre moral e ciência que o torna possível.
Direi que sim, ocorre contradições;
Todavia, o Direito traz universalização,
E, finalmente, o aborto para anencéfalos passa a ser uma opção;
A mulher, ineditamente, pode decidir:
Gerar ou interromper?
Fica a questão.
Pela primeira vez, seu útero não estará à disposição.
Meu desejo é que os avanços prossigam,
Fazendo do aborto, em todos os casos, uma alternativa possível.

Avante Direito, emancipe-nos. 

Bruna Maria Modesto Ribeiro, diurno

Fronteiras jurídicas

Na aplicação do Direito, segundo Pierre Bourdieu, deve-se lagar tanto a ideia de que o Direito serve a classe dominante (instrumentalismo), quanto a de que ele é independente das pressões sociais (formalismo).

Para ele, a interpretação, no âmbito do campo jurídico, dos acontecimentos é limitada pelo “espaço dos possíveis”, ou seja, até que ponto a hermenêutica pode ir. Assim, os seus operadores deveriam deixar de lado os seus pensamentos e vivências pessoais e aplicar apenas o que pertence ao campo jurídico, havendo, então, uma racionalização, a qual é reforçada pela neutralização e pela universalização da linguagem. Dessa forma, não é possível pensar em um Direito que tome partido de algum habitus, interesse ou ideologia, pois se tem que ele é a justiça social.

De acordo com o autor, há uma luta simbólica entre os que pensam o direito e os que o operam sobre como ele deve ser aplicado, pois “(...) os juristas e outros teóricos do direito tendem a puxar o direito no sentido da teoria pura (...)”, ao passo que “os juízes ordinários e outros práticos mais atentos às aplicações que dele podem ser feitas em situações concretas, orientam-no para uma espécie de casuística das situações concretas”, sendo estes os responsáveis pelas mudanças que aqueles deverão registrar.

Na realidade, entretanto, a racionalidade pura é algo impossível. O juiz fica, pois, encarregado de adaptar as normas à realidade em que vive, já que o direito não admite a eternização.

Tendo isso em vista, é possível concluir que alguns ministros conservadores, como o relator Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Carmem Lúcia, deixaram seus valores para trás, e utilizaram-se apenas do direito, ao julgar a ADPF 54/DF, a qual decidia sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, declarando-a procedente e autorizando tal interrupção.


Bruna Benzi Bertolletti – 1º ano direito diurno

O falso alvorecer da liberdade

Art. 5º- Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

Teríamos nós liberdade?
Trago esse questionamento perante ao contexto em que vivemos rodeado de antinomias, por exemplo, um país laico onde a religião interfere em inúmeras decisões que afetam toda a sociedade, uma vez que dentro do legislativo o conservadorismo se faz mais que presente. A estrutura social seria capaz, então, de determinar as ações individuais de todos nós?
Pierre Bourdieu traz o pensamento de habitus como um conceito capaz de conciliar a oposição aparente entre realidade exterior e as realidades individuais. Isto é, sabendo da dualidade existente entre o agente (indivíduo) e a estrutura (sociedade) tem-se que o primeiro não teria margens de liberdade absoluta na sua ação, uma vez que a forma de interagir individual é socialmente construída pelas organizações e pelo próprio indivíduo ao estrutura-las em si. Assim, o habitus é a “interiorização da exterioridade e a exteriorização da interioridade”. Ou seja, ele capta o modo como a sociedade se deposita nas pessoas, e capta também as respostas dos agentes às solicitações do meio social, que são guiadas pelas disposições apreendidas no passado.
Para ilustrar essa teoria de forma prática nos utilizemos da ADPF 54, proposta em 2004 pela CNTS (Comissão Nacional dos Trabalhadores de Saúde) a fim de declarar inconstitucional a interpretação de ter como crime o aborto de feto anencefálico. É defendido que a vida extrauterina acaba sendo fatal em 100% dos casos, além de trazer perigos e complicações para gestante. Além disso, a inconstitucionalidade está na ofensa à integridade física e psíquica da gestante, bem como na violação ao seu direito de privacidade e intimidade, aliado a autonomia da vontade. Contudo, acaba sendo questionado por parte da sociedade e instituições.
Entretanto, apesar da legalização do aborto em caso de anencefalia, é de conhecimento comum o peso do debate, uma vez que envolve duas questões garantidas na Constituição: a vida e a liberdade. Nesse ponto, cabe lembrar outro conceito de Bourdieu- o campo- que trata da ideia de um conjunto de organizações ligadas pelo seus habitus; um campo de força dentro do qual os indivíduos ocupam posições que determinam quais delas eles tomarão para conservar ou modificar determinadas ações.
A Igreja, por exemplo, exerceria um poder simbólico sobre a prática dos indivíduos que vivem em sociedade, influenciando-os em suas decisões e tomadas de posição. Neste sentido, através da imposição da visão de mundo da Igreja, da internalização dos valores religiosos, os indivíduos agem de determinada forma, como um habitus, “sistema de disposições inconscientes que constitui o produto da interiorização das estruturas objetivas”.

Tem-se, portanto, que para Bourdieu, a maior parte das ações dos agentes sociais é produto de um encontro entre um habitus e um campo. Logo, nota-se uma falsa ideia de liberdade, ou relativa. Pensar a relação entre indivíduo e sociedade com base na categoria habitus implica afirmar que o individual, o pessoal e o subjetivo são simultaneamente sociais e coletivamente orquestrados. O habitus é uma subjetividade socializada (Bourdieu, 1992, p. 101).


Giovanna M. Pasquini, 1º ano Direito, Matutino