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quinta-feira, 7 de junho de 2018

Aborto de anencéfalos e a ciência jurídica: o formalismo e o instrumentalismo à luz de Bourdieu

 Em 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) ajuizou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) acerca da inconstitucionalidade de se criminalizar o aborto de anencéfalos. A inconstitucionalidade estaria na violação de 3 preceitos fundamentais: primeiro, da dignidade da pessoa humana (previsto no art. 1° III da C.F.), no caso, dignidade da gestante; segundo, direito à liberdade/livre arbítrio (previsto no art. 5° LIV da C.F.); por fim, direito à saúde (previsto no art. 6° da C.F.). Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou procedente a ADPF, considerando uma ação necessária a fim de contemplar o direito de escolha da mulher, de forma que considera uma minoria e contraria boa parte da moral conservadora da sociedade brasileira (muito religiosa). Posto isso, pode-se analisar o caso de aborto de anencéfalos de acordo com o formalismo e instrumentalismo nperspectiva do sociólogo francês Bourdieu, visto que os ministros fazem uso da rigorosa ciência jurídica. 
  O formalismo. De acordo com Bourdieu, o formalismo seria a autonomia absoluta da forma jurídica (Direito) em relação ao mundo social; expondo que, ao usar da ciência rigorosa do direito, o formalismo deve ser evitado; já que essa autonomia é totalmente ilusória, de forma que mesmo se embasando apenas no direito não há como fugir da pressão social, pelo fato de ela estar totalmente ponderada na própria criação do direito. Associando com o julgado, dispomos da interpretação dos juristas e ministros do STF a respeito do aborto de anencéfalos, eles poderiam considerar a opinião de uma parcela da população, a qual está muito ligada à religiosidade, sendo contra o aborto; ou considerar a opinião de outra parcela da sociedade brasileira, a qual defende o aborto; ou ignorá-las e seguir somente os ditames Direito;  no entanto, com o bom uso de uma rigorosa ciência jurídica, eles mesclaram opiniões, ouviram diversas organizações (que representariam a sociedade), algumas que defendem o aborto (na maior parte, organizações de médicos de mulheres, mas havia até uma organização religiosa) e outras que são contra (organizações religiosas, na maior parte); portanto houve realmente o distanciamento do formalismo como previsto por Bourdieu. Concluindo, a partir dessa análise inicial, pode-se ver que o fato de considerar as opiniões/pressões sociais torna o Direito muito mais legítimo e justo. 
  O instrumentalismo. Segundo Bourdieu, o instrumentalismo é a concepção do direito como um utensílio a serviço dos dominantes; assim como o formalismo, recorrendo à rigorosa ciência jurídica, o instrumentalismo deve ser, obviamente, evitado; em virtude de o Direito ser uma máxima para a sociedade como um todo, de forma que todos os indivíduos devem ser por ele contemplados, principalmente a minoria, não podendo ter respaldo apenas em uma fração da população, ainda mais beneficiando-a. Associando ao julgado, temos os ministros do STF no seu parecer final como a favor do aborto de anencéfalos (foram 8 votos a favor e apenas 2 votos contrários), dessa maneira eles instrumentaram (utilizaram) o Direito a favor de uma minoria: mulheres gestantes de anencéfalos; portanto houve também o desvio do instrumentalismo como é esperado nas convicções de Bourdieu. Concluindo, revela-se como fator importantíssimo para um Direito plenamente justo e científico o distanciamento também do instrumentalismo. 
  Dessarte, considerando todo o exposto, observamos que para obter-se o Direito essencialmente científico, é necessário: evitar-se o formalismo e o instrumentalismo. Assim, o Direito torna-se mais legítimo e justo, como foi no caso da ADPF solicitante da descriminalização do aborto de anencéfalos. 

Brianda Invernizzi C. Soto - 1° Diurno
     Para que o estudo sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental acerca da proibição do aborto, em casos de anencefalia do feto, seja efetivo, precisa-se entender o que é anencefalia e quais as condições dos envolvidos numa situação como essa. Essa doença consiste em malformação do tubo neural, com ausência parcial do encéfalo e do crânio, por causa de um defeito no fechamento do tubo neural durante a formação embrionária. Segundo o Dr. Thomaz Rafael Gollop, sobre a condição do feto com essa malformação, "isto é a morte cerebral, rigorosamente igual. O anencéfalo é um morto cerebral que tem batimento cardíaco e respiração", ou seja, ele não tem consciência, cognição, comunicação, afetividade e emotividade. Com o mesmo raciocínio, o Dr. José Aristodemo Pinotti afirma essa doença ser "letal, em cem por cento dos casos, quando o diagnóstico é correto... O feto anencéfalo, sem cérebro, não tem potencialidade de vida. Hoje, é consensual, no Brasil e no mundo, que a morte se diagnostica pela morte cerebral. Quem não tem cérebro, não tem vida". Ainda, a anencefalia se trata de uma doença congênita letal, pois não há possibilidade de desenvolvimento da massa encefálica em momento posterior.  
     Deve-se considerar, também, a situação dos pais do feto anencefálico. Primeiro, a saúde física da mulher pode correr diversos riscos. Consta-se que, em 50% dos casos de feto anencefálico, ocorre a poli-hidrâmnio, que é o aumento do líquido amniótico, que pode levar à hipertensão, ao trabalho de parto prematuro, à hemorragia pós-parto e ao prolapso de cordão. Deve-se ressaltar, ainda, que a ocorrência de aborto clandestino, para as mulheres pobres, leva a consequências absurdas à mulher (em alguns casos, até a morte), mas a continuidade dessa gravidez também poderia levar a essas consequências e, portanto, tem-se uma questão de saúde pública e não de direito penal.  Considerando a saúde mental dos pais, segundo a Dra. Talvane Marins de Moraes, dar continuidade numa gestação sem possibilidade de vida para o feto pode gerar depressão, estresse pós-traumático e até mesmo tentativa de suicídio, já que não permitem uma decisão à mulher, ela pode chegar à conclusão, na depressão, de autoextermínio. Existem, inclusive, estudiosos que consideram como tortura expor a mulher a essa situação.
     Assim, questiona-se se antecipar o evento da morte do feto, que irá ocorrer de qualquer forma, para manter a saúde física e mental da mulher, pode ser considerado contra o princípio da dignidade humana. A partir das situações expostas, afirma-se que negar o direito à mulher de escolha se quer prosseguir ou não com a gestação, nessa situação, se constitui como um descumprimento do direito à saúde, à dignidade, à liberdade, à autonomia e à privacidade.  Isto porque, a interrupção da gravidez nesse caso, não poderia ser considerado como um crime à vida já que o feto não têm vida. Não tendo, o feto, potencialidade de vida, ele é considerado natimorto e, portanto, é morto juridicamente. A Lei de Transplante de Órgãos (Lei 9.434/1997) fixa como momento da morte do ser humano  o da morte encefálica, ou seja, o feto anencefálico não é titular do direito à vida justamente porque não há viabilidade de vida. 
     No que diz respeito à falta de previsão expressa no Código Penal de 1940, tem-se que, na época, não existia possibilidade de se averiguar, antes do nascimento, se o feto tinha a doença, entretanto, com o avanço da medicina, hoje essa possibilidade existe. Assim, segundo a perspectiva de Bourdieu, é necessário que haja uma adequação segundo o momento histórico. Essa adequação seria encontrar uma maneira inédita para a demanda de maneira a considerar a norma. Por fim, considera-se que existe por trás dessa necessidade, questões sociais profundas que são construídas  cognitivamente. Portanto, deve ser considerado esse exercício de pressão como uma forma de reivindicação dos direitos à saúde, à liberdade e à dignidade. 

Camila Matias - Direito/ Diurno.