Acordaram os
ministros do STF, nos autos da ADI nº 4.277-DF relatada pelo Ministro Ayres
Britto prevento por já ser relator da ADPF nº 132-RJ (conhecida como ADI pelo
plenário) que versava sobre tema similar, pela aplicação da técnica da
interpretação conforme a Constituição ao artigo nº 1.723 do Código Civil para
estender à união estável homoafetiva as mesmas regras e efeitos da
heteroafetiva. Em decisão inédita, lastreando-se nos princípios constitucionais
da igualdade, liberdade, dignidade da pessoa humana, segurança jurídica e da
razoabilidade, os ministros unanimemente supriram a omissão do direito positivo
pátrio para estender às uniões de pessoas do mesmo gênero as mesmas consequências
jurídicas da união de pessoas de gênero diverso.
A questão é
fulcral no mundo moderno, a decisão precisa e coerente com os princípios do direito,
impacta diretamente em questões patrimoniais e obrigacionais, garantindo a
plenitude do direito e a segurança jurídica às relações que foram deixadas à margem
da lei. Entretanto, para garantir a justiça, o guardião da constituição afastou
a interpretação literal de um dispositivo da Carta para extrair dos princípios
gerais nela implícitos, margem para conferir-lhe entendimento diverso. E a
partir desse entendimento, lastreado mais sobre a razoabilidade e no autorreferenciamento,
o Pretório Excelso – a título de afastar uma interpretação desconforme à Carta
da República – acresceu à lei sentido que dela não era possível inferir ou
pior, que à sua literalidade era contrário. O STF teve a coragem que os outros
poderes, sagrados pelo voto popular, não tiveram, mas para tanto legislou.
O fim é nobre.
A decisão urgia. Quem competia dispor, acovardou-se. O judiciário – ouvindo o
tempo – antecipou-se à lei. Mas e quando – antecipando-se também à lei –
decidir por restringir direitos ou respaldar sua restrição em lugar de ampliá-los?
Garapon possibilita
uma leitura crítica da questão. Dentro da democracia liberal, o indivíduo dotado
de autonomia e da energia inerente à liberdade (que é a nota marcante da
modernidade), assiste a desidratação paulatina dos grupos representativos e dos
magistrados naturais que geriam os embates sociais. Esse mesmo indivíduo projeta
no judiciário a possibilidade de tutelar suas demandas. O direito deixa então
sua função de arbitrar conflitos para tutelar os direitos desse indivíduo (e de
grupos sem representatividade expressiva em órgãos majoritários) que passa a
mover o judiciário para realizar seus direitos. Uma modificação drástica do
próprio ofício do jurista, porque exige agora além do conhecimento da lei (e
nesse caso, da literalidade da Constituição), um conhecimento orgânico da
realidade e das políticas públicas e as falhas de sua ação que deixam ao
desabrigo as demandas específicas desses grupos.
Maus
complementa, ressaltando o perigo de conferir ao judiciário semelhante amplitude
de campo de ação, posto que “[q]uando a Justiça ascende ela própria à condição
de mais alta instância moral da sociedade, passa a escapar de qualquer
mecanismo de controle social — controle ao qual normalmente se deve subordinar
toda instituição do Estado em uma forma de organização política democrática.”
(p. 187)
O fato é que
há deslocamento entre o legislativo, a quem a ordem constitucional legitimamente
confere o poder de inovar o direito positivo, e a vontade geral difusa de uma
sociedade: há uma crise de representatividade, um ruído no processo de
representação precisamente em um dos poderes sagrados pelo voto popular, que
engessa as possibilidades de discussão e evolução dos embates. Nesse contexto,
o judiciário quer se projetar como tutor da sociedade, poder hipertrofiado, que
ao suprir o silêncio dos demais, faz-lhes as vezes.