A discussão proposta tem como base conceitual elementar o texto do jurista, exímio professor e Ministro do STF, Luis Roberto Barroso. Para tanto, levando em consideração as definições que o autor deu para o que é Judicialização e Ativismo Judicial, procura-se concluir, ao longo deste texto, se há Legitimidade Democrática nas decisões políticas do STF. Para os efeitos da discussão aqui disposta, Judicialização é o processo pelo qual grandes escolhas políticas são exercidas pelo Poder Judiciário e Ativismo Judicial é a concretização de valores e princípios constitucionais, com participação ativa e deliberada do Poder Judiciário sobre a esfera de atuação dos demais poderes.
A proposta que venho apresentar tem dois questionamentos básicos a se refletir: primeiro, o Poder Judiciário tem competência constitucional para decidir os assuntos políticos a que tem se proposto fazer, levando em consideração o caso da ADPF sobre as cotas raciais na UnB? Segundo, identificada a resposta à primeira pergunta, qual é a engenharia institucional da Separação de Poderes, no Brasil?
Para que se verse sobre o primeiro questionamento, deve-se levar em consideração o art. 2º da Constituição Federal de 1988 que diz respeito à existência de Poderes independentes e harmônicos entre si. Ora, na tradicional Separação de Poderes, e por tradicional não me refiro apenas à obra teórica que tem por preceitos aqueles retirados da construção identificada por Montesquieu, mas sim à sua tradicional e primitiva forma de manifestação, o Poder Judiciário é concebido como aquele que é desprovido de disputa política, no sentido estrito, veja bem, qualquer decisão judiciária é uma escolha política no sentido amplo, cabendo à este decidir aqueles assuntos que lhes são encaminhados por meio do interesse de uma parte em contraposição ao de outra, sendo solicitada sua manifestação técnica-jurídica, ou seja, de representação máxima do Direito, para que se resolva o litígio. O Espírito das Leis é publicado em 1748, após mais de 20 anos de trabalho de seu autor nesta obra, portanto, ao menos a partir de 1728 pode ser identificado o fenômeno da Separação de Poderes no seu berço, a Inglaterra. Seu estudo e sistematização, principiado por Montesquieu, adentra ao arcabouço jurídico-político-institucional de toda a Europa e América do Norte de maneira muito rápida ao ponto de a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, considerar que onde esta não existe, não há Constituição, relembrando que a necessidade da existência de Constituição, à época, era levada em boa conta, como ainda o é hoje. As grandes decisões políticas que são levadas ao STF, no Brasil, ainda hoje remontam à época das primeiras criações institucionais da Separação de Poderes, no qual este deve ser provocado para proferir-se, não podendo decidir deliberadamente sobre qualquer matéria. Assim, no ordenamento jurídico concebido, no modelo kelseniano, pela Constituição de 1988, o STF é convidado a decidir politicamente por meio do Controle de Constitucionalidade, sendo este meio de acesso ao Judiciário legítimo em relação àqueles que pleiteiam o conhecimento da inconstitucionalidade. Perceba que, com o hiato histórico que fica evidente nas considerações deste parágrafo, a Separação de Poderes em sua formação que chamei de tradicional abominava toda e qualquer manifestação política advinda do Poder Judiciário, enquanto a nova organização permite, no caso de provocação por meio do controle de constitucionalidade, este tipo de manifestação. Assim, torna-se claro que, no ordenamento jurídico atual, o primeiro questionamento pode ser facilmente respondido com a afirmativa de que o STF tem as prerrogativas e competências constitucionais para, em casos específicos, se pronunciar politicamente, como o fez na ADPF das cotas raciais na UnB, sustentado pelo fato de ter sido provocado.
Elaborado um rápido panorama do surgimento institucional da Separação de Poderes no último parágrafo, datei-o do século XVIII, no qual já fazia este parte do programa da Política e da Ciência como fato e não como teoria. O fato é que o surgimento do Controle de Constitucionalidade e, portanto, da possibilidade de escolha política do Poder Judiciário, data de outro período. Façamos um outro breve panorama. A primeira forma de Controle de Constitucionalidade tem seu precedente nos EUA, em 1803, no caso Marbury x Madison, sendo esta uma aquisição fenomênica do ordenamento jurídico norte-americano que não é fundamentado pelas mesmas fontes de direito que o sistema europeu e o sistema brasileiro. Ainda que o Controle de Constitucionalidade tivesse se difundido nesta época, algo que não aconteceu, a construção fática e teórica da Separação de Poderes teria, ao menos, 70 anos. O sistema jurídico americano, entretanto, foi construído historicamente pela
Commom Law, e sua Ciência do Direito pelo estudo de
cases, sustentando com maior facilidade o adentramento do Controle de Constitucionalidade. No sistema europeu, a inovação do Controle de Constitucionalidade data da década de 1920, sendo uma construção teórica elaborada por Kelsen. O hiato histórico entre o ingresso no ordenamento jurídico da Separação de Poderes e do Controle de Constitucionalidade proporcionou a sedimentação de conceitos acerca da Separação de Poderes que são incorporados aos estudos jurídicos ainda hoje e que sustentam princípios que regem quase todos os ordenamentos jurídicos do sistema Ocidental, como aquele a que chamei atenção no começo do texto, a harmonia entre os poderes. Ora, considerando o primeiro questionamento, o Poder Judiciário tem capacidade de decidir politicamente em caso de provocação por meio do Controle de Constitucionalidade, alterando profundamente, somado com diversos outros fenômenos, deve-se lembrar de que este não é isolado, a natureza das delegações determinadas aos poderes. Para que se discuta o segundo ponto, ou questionamento, identifico e sustento que a organização institucional no Brasil, sustentada pela Separação de Poderes, é insuficiente para conceder a segurança do ordenamento jurídico.
Na Separação de Poderes tradicional o
locus da disputa e tomada de decisão política pode ser considerado de dupla manifestação: na relação Executivo-Legislativo e dentro do próprio Poder Legislativo. A Judicialização, como identificada no princípio do texto, é o deslocamento fático, por meio da construção teórica e sedimentada no ordenamento jurídico e na ciência jurídica no Brasil sobre o Controle de Constitucionalidade, do
locus da disputa política da tradicional Separação para, talvez, uma tripla manifestação, mantendo as duas tradicionais e acrescentando a relação Executivo + Legislativo
versus Judiciário.
Neste campo, cito um caso prático. Durante manifestações feitas como Presidente do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Joaquim Barbosa, em diversos julgamentos, mas principalmente levando em consideração os casos de Corrupção, criticou o funcionamento e a qualidade dos Poderes Legislativo e Executivo, no Brasil, de forma que reclamou da morosidade e da inércia do Poder Legislativo. Ora, a tomada de decisão política é um campo amplo do qual pode surgir qualquer resultado cabível dentro do ordenamento jurídico previsto pela Constituição, de forma que a não manifestação ou a chamada inércia do Poder Legislativo é, também, uma forma de manifestação. Ou seja, colocado em questionamento o funcionamento do Poder Legislativo pelo representante máximo do Poder Judiciário, à época, e o uso da justificativa de inércia deste Poder na tomada de decisão política, como meio pelo qual é justificada uma tomada de decisão política por parte do Judiciário que não aquela prevista pelo Controle de Constitucionalidade, o STF extrapola os meios comuns de decisão política a que tem competência sem que, entretanto, isto seja um absurdo para o ordenamento jurídico brasileiro que, recorrentemente, toma decisões políticas por meio desta Casa. A manifestação de escolha política tomada pelo STF foi questionada pelo Senador Fernando Collor que pronunciou discurso no Senado Federal questionando a constitucionalidade desta decisão ao proclamar, expressamente, que o artigo 2º da Constituição Federal versa sobre a independência e harmonia entre os Poderes por ela constituídos, algo que claramente não estava sendo possibilitado neste caso. Tendo havido questão litigiosa entre o STF e o Senado Federal, qual órgão será responsável por mediar e decidir o caso? Aí está a insuficiência institucional no Brasil.
A insuficiência institucional no Brasil é o fundamento básico pelo qual se mantém os questionamentos acerca da nova engenharia de disputa do poder político. Assim, cito duas decorrências deste fenômeno que não serão aqui discutidas, mas de importante reflexão. Como exposto, o Judiciário é chamado a responder politicamente em algumas questões, de forma que o STF se torna, na medida em que julga o Controle de Constitucionalidade, cada vez mais um órgão de escolhas políticas, tornando praxe da Casa este tipo de decisão. No caso do julgamento de corrupção, não há ação sobre o Controle de Constitucionalidade e, ainda assim, a escolha foi amplamente política e potencializada pela mídia. Esta é uma das decorrências da insuficiência institucional pois, se tinha legitimidade e competência constitucionalmente conferida no caso das cotas, no caso do julgamento não tinha. Outra decorrência é o fato de que a escolha política feito nas duas relações tradicionais se dá de maneira lenta, por conta da manifestação e discussão política. Na sociedade globalizada e imediatista do século XXI, a necessidade de respostas rápidas da máquina estatal é paulatinamente mais evidente, e a nova manifestação de escolha política supre essa necessidade de maneira eficiente, resolvendo mais rapidamente e, portanto, tornando ainda mais inerte o Poder Legislativo.
Gostaria de colocar diversas outras questões neste texto, como a lógica da distribuição de Capital e a política de sua aplicação no Governo PT (2002-2014(2018)) e sua influência na Judicialização, por conta de tornar o caráter econômico do país distinto da manifestação política, ou a alteração da natureza do objeto de discussão da Câmara dos Deputados, por conta de sua operacionalização por meio do Executivo e das suas atribuições constitucionais, mas não será possível por conta do currículo do curso de graduação em Direito, que exige (há mais de uma hora) que eu estivesse em outra atividade. Sou grato àqueles que leram o texto, espero que seja um fundamento de discussão e de elaboração de pesquisa, que ainda pretendo elaborar sobre o tema.
Artur Marchioni, Turma XXXI, Diurno