Em
filosofia ou em sociologia, a relação entre dois autores é, normalmente,
bastante complicada, e isso, principalmente, quando se trata de autores cujas
similaridades não são tão explícitas. Um exemplo desse tipo de dificuldade
dá-se com os autores de que pretendemos tratar no presente trabalho: Habermas e
Durkheim. A dificuldade em relacionar esses autores constitui-se na falta de
uma presença tão explicita e consensual (entre leitores) da similaridade entre
eles: se, se fosse, por exemplo, relacionar Habermas e Weber teríamos imensa
facilidade,
porém, o mesmo não se dá no caso de Durkheim.
Apesar de toda essa dificuldade,
acreditamos que podemos estabelecer algumas similaridades em um aspecto que
chamaremos de ético. O que isso quer dizer? Trata-se de mostrar que, naquilo
que concerne às relações entre a sociedade e o comportamento dos indivíduos,
Durkheim e Habermas possuem algumas ideias bastante similares.
É claro (de modo algum negaríamos)
que esse tipo de relação enfrenta seus problemas: não é preciso ter um
conhecimento muito profundo de história para saber que os autores que estamos
tratando viveram em tempos distintos e tiveram contato com sociedades
distintas.
Essa dificuldade, no entanto, pode,
em nossa perspectiva, ser contornada, notando-se que pensamos no fato de que,
ainda que relativizemos cada autor ao seu período histórico, perderemos a
possibilidade de acreditar em sua atualidade se formos radicais nesse tipo de
relativização. Assim, embora seja um absurdo afirmar ideias como a de que
Durkheim teria entrevisto as bases do pensamento de Habermas ou estaria
preocupado com os mesmos problemas que o teórico da ação comunicativa, não
estaremos, a nosso ver, cometendo uma heresia intelectual se procurarmos
mostrar que algumas das conclusões a que Durkheim chegou a respeito das
características gerais da sociedade se aproximam daquelas preconizadas por
Habermas e podem servir para lidar com alguns dos mesmos problemas que este
último enxerga no cenário contemporâneo.
Além disso, antes de adentrarmos o
conteúdo dessa temática, acreditamos ser razoável deixarmos claro o nosso
material de trabalho; com isso esperamos estar delimitando melhor a temática e
a ambição de nosso trabalho. Dentro dessa perspectiva, no caso de Durkheim,
nosso instrumento de trabalho serão as obras mais conhecidas, notando-se que,
embora não tenhamos a pretensão de fazer um escrutínio rigoroso de tais obras,
elas nos permitirão ter uma visão geral do pensamento do autor; dentro desse
objetivo nossos textos são: As regras do
método sociológico (DURKHEIM, 2007) e Da
divisão do trabalho social (DURKHEIM, 2010).
No caso de Habermas, nos limitaremos
a um único texto; é claro que procuraremos relacionar tal texto com as
características do pensamento de Habermas, porém procuraremos tratá-lo como a
base de nossas exposições, pois acreditamos que ele é perfeito para se
repensar, em bases mais recentes, os ideais de solidariedade sobre os quais
refletiu Durkheim. O texto em questão é Trabalho
e interação (HABERMAS, 2007). Nesse texto, ao refletir sobre algumas lições
proferidas pelo jovem Hegel, Habermas constrói concepções que, futuramente,
dariam origem à famigerada noção de luta por reconhecimento. É, principalmente,
focados nessa noção que iremos, aqui, trabalhar o pensamento de Habermas.
Dito isso, acreditamos poder passar
ao conteúdo de nossa temática. No desenvolvimento de tal conteúdo dividiremos
nosso raciocínio em duas etapas: primeiramente, trabalharemos, separadamente,
as noções Durkheimianas de solidariedade mecânica e solidariedade orgânica, e a
noção habermasiana de luta por reconhecimento; e depois, passaremos a
correlacionar os dois autores.
Começando, então, passemos à
consideração do pensamento de Durkheim. Em tal pensamento começaremos definindo
a solidariedade mecânica: em Da divisão
do trabalho social (DURKHEIM, 2010), Durkheim explica que nas sociedades
mais antigas (que nós, no senso comum, tenderíamos a chamar de primitivas) a
divisão do trabalho tende a ser menor, e, consequentemente, menos
especializada; dentro dessa situação, o sociólogo explica que existe uma
solidariedade mecânica no sentido de que a vida dos indivíduos particulares, na
medida em que estes indivíduos possuem menos importância prática, pode ser substituída.
Esse estado de coisas gerado pela solidariedade mecânica causa uma grande
dependência, por parte do indivíduo, com relação à sociedade, uma vez que este
(indivíduo) precisa, constantemente, provar o seu valor (seguir de maneira
metódica os ritos e as tradições) para continuar vivendo em tal sociedade. Daí,
como assinala o próprio Durkheim (2010), o direito penal, ser muito mais
intenso e efetivo, uma vez que não há uma preocupação muito grande em valorizar
a vida que se mostra inútil ou até ameaçadora para tais sociedades.
Fornecido um comentário considerável
a respeito da noção de solidariedade mecânica, passemos à consideração da
solidariedade orgânica: segundo Durkheim (2010), nas sociedades modernas
(aquelas que o senso comum, muito provavelmente, trataria como sendo mais evoluídas
ou atuais) há uma divisão maior do trabalho de modo que cada indivíduo, devido
à posse de um saber mais efetivo e especializado, passa ter excepcional
relevância para os fins do todo (social); é dentro dessa situação que o autor
de Da divisão social do trabalho
lança mão da noção de solidariedade orgânica. Essa situação caracteriza muito
bem a situação do ideal das sociedades modernas onde o indivíduo passa a
receber um respeito maior e, consequentemente, uma maior valorização. Dentro
desse contexto, um direito penal mais invasivo perde sua força e dá lugar a uma
preocupação maior com o direito “restitutivo” (direito civil, direito de
família, direito tributário e etc.). Tem-se, aí, o surgimento de uma maior
preocupação de se restituir, a cada indivíduo, aquilo que lhe é de direito (enquanto
nas sociedades ditas mais antigas, o direito penal tenda a ser uma espécie de retaliação
contra o indivíduo que traí as tradições de tais sociedades, nas sociedades
modernas o direito tende, em grande parte, a ser uma tentativa de restituir o
que é devido e, mesmo, reformar um indivíduo que precisa ser reintegrado na
vida social).
Feito esse comentário, acreditamos
poder, por enquanto, encerrar nossas considerações a respeito de Durkheim e
passar a uma consideração a respeito de Habermas. Esse autor, no, já
mencionado, Trabalho e interação
(Habermas, 2007), começa desenvolver a ideia de que, se no campo de trabalho os
indivíduos lutam pela sobrevivência, nas relações sociais eles lutam por
reconhecimento. Essa concepção de Habermas irá se desenvolver melhor em suas
obras posteriores; abandonando completamente um materialismo radical, o autor
alemão procurará dar uma ênfase maior em aspectos morais que permanecem
inerentes à linguagem. Essa ideia é muito bem desenvolvida Teoria de La accion comunicativa - complementos (1989); em um dos
textos dessa obra, Habermas desenvolve a ideia do que chama de uma pragmática
universal. Tal ideia está relacionada com a tese que, presente na linguagem
cotidiana, existem, nas grandes civilizações dos dias atuais, valores morais
que evidenciam ideais morais (muitas vezes, até iluministas) de emancipação
humana. Nesses ideais vemos, na contramão de muitos movimentos destrutivos como
o nazismo, a
sobrevivência de alguns pontos de vista que, talvez, seja nossa única esperança
de que tais movimentos não venham a se repetir. Esse tipo de ideia, inclusive,
é, também, desenvolvida no famigerado O
discurso filosófico da modernidade (HABERMAS, 2002); ainda que não
tenhamos, aqui, pretensão de desenvolver a complexidade desse trabalho, é
interessante lembrá-lo como sendo, entre outras coisas, a constatação de um
projeto (o da modernidade emancipatória), que ainda não foi realizado, e, no
entanto, não deixa de sobreviver enquanto projeto.
Para Habermas, uma sociedade
emancipatória, abre a possibilidade de que os indivíduos encontrem sucesso em
suas lutas (por sobrevivência e reconhecimento), e não caiam nas barbáries do fascismo
e do nazismo.
Feito esse comentário, acreditamos
poder encerrar nossos comentários referentes à Habermas e passar ao diálogo
entre esse autor e Durkheim. Antes de iniciarmos os principais raciocínios que
concernem a esse diálogo, consideramos razoável expor a principal tese que nos
guiará: trata-se de, ainda que de modo o mais modesto possível, tentar mostrar
que o tipo de ideal que Durkheim assinala nas sociedades modernas (onde há uma
divisão orgânica do trabalho) possui pontos de coincidência com os ideais de
emancipação que Habermas acha ser possível detectar, mesmo nos dias de hoje, na
linguagem cotidiana.
Buscando, então, esse objetivo
acreditamos ser prudente começar deixando claro que , segundo Durkheim, o indivíduo
que se desprende da moral social
(fruto das solidariedades orgânica e mecânica) constitui-se em um indivíduo
patológico. Confiamos que essa tese, embora tenha sido concebida em um contexto
histórico bastante específico, pode ganhar sua atualidade quando pensada em
correlação com os mesmos problemas que motivaram as reflexões da escola de
Frankfurt e, consequentemente, do pensamento de Habermas. Tais problemas estão
intimamente relacionados com uma situação de calamidade moral que, durante o
século XX, atingiu boa parte das grandes civilizações do globo terrestre:
situações calamitosas e violentas como o nazismo, o fascismo, o stalinismo, o
franquismo, o salazarismo, os governos ditatoriais da América latina e algumas
das atitudes exageradas do macarthismo são (todas essas situações) a prova, se
tentarmos utilizar as noções de Durkheim (2010), da presença, em muitas
civilizações importantes, de indivíduos patológicos. Isso fica bastante claro
se nos focarmos, primeiramente, na solidariedade orgânica: o ideal de uma
solidariedade que valoriza o indivíduo e sua integração na sociedade é
completamente solapado pelas manifestações políticas que mencionamos (nazismo, fascismo,
stalinismo, franquismo e etc.), uma vez que tais manifestações – principalmente
em casos do extermínio em massa (como os campos de concentração) –
banalizam completamente a vida como um
todo, e, consequentemente, a figura do indivíduo. Dentro dessa situação,
inclusive, mesmo a solidariedade mecânica é, muitas vezes, solapada: no sentido
proposto por Durkheim (2010), a solidariedade mecânica não deixa de ser uma
solidariedade em prol da vida; em regimes como o fascismo e o nazismo, mesmo
existindo a presença do trabalho forçado
(por exemplo), os indivíduos, torturados ou, pelo menos, ignorados (por certos
ditadores) até perderem toda sua dignidade, perdem, completamente, a noção do
próprio sentido social do trabalho.
Dentro de toda essa situação de
banalização da solidariedade, vemos, claramente, que os conceitos de Durkheim
podem, muito bem, ser retomados para se pensar problemas como aqueles preconizados
por Habermas: assim como Durkheim, Habermas, ao descobrir uma luta por
reconhecimento (uma esfera moral da vida social) e, posteriormente, um projeto
emancipatório inerente a tal luta, acaba, ainda que por vias diferentes,
levando a se pensar diagnósticos muito similares àqueles que os conceitos
durkheimianos nos permitem pensar; tanto Habermas, quanto Durkheim colocam, na
base do ideal de uma sociedade “saudável” (para fazer jus à terminologia do
próprio Durkheim) a necessidade de algum tipo de solidariedade entre os
indivíduos. Esse tipo de solidariedade, pelo menos no plano teórico, evolui e
deu origem a um ideal de sociedade onde a divisão orgânica do trabalho (no caso
de Durkheim) e os valores morais inerentes à linguagem (no caso de Habermas)
abririam a possibilidade de se pensar um tipo de organização em que o indivíduo
é valorizado e qualquer tipo de barbárie é superada aos poucos. Esse tipo de
ideal, no entanto, foi solapado por muitas das atitudes do século XX, daí a
importância de, sem desvalorizar outros pensamentos e relações, se retomar, em
um diálogo, os dois autores (Durkheim e Habermas) cuja obra nos ajuda a
estarmos alertas para o perigo de voltarmos a estilos de vida mais agressivos que
aqueles que o próprio Durkheim (2010) atribuía àquilo que, no senso comum,
costumamos chamar de sociedades primitivas.
Feito esse comentário, acreditamos
poder encerrar este texto. É claro que, dentro de nossa proposta de diálogo
(Durkheim e Habermas), este texto é extremamente insuficiente, porém
acreditamos que esse tipo de diálogo, quando estabelecido com boa fé e rigor
acadêmico, jamais pode ser esgotado por um único diálogo. Sendo assim,
esperamos que o nosso texto, mais do que a tentativa de se fechar um tema ou
defender uma tese ambiciosa, se constitua em um estímulo para uma pesquisa que
deva ser continuamente realizada.
REFERÊNCIAS.
ADORNO, T e HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de janeiro: Zahar, 1985.
DURKEHEIM, E. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
_____. Da divisão social do trabalho. São Paulo: Martins fontes, 2010.
HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
_____. Técnica e ciência como ideologia in HABERMAS, J. Técnica e ciência como ideologia. Lisboa: edições 70, 2007.
_____. Teoria de La accion comunicativa – complementos. Madrid: Editora Catedra, 1889.
_____. Trabalho e interação in HABERMAS, J. Técnica e ciência como ideologia. Lisboa: Edições 70, 2007.