A temática do multiculturalismo reverbera na seara do Direito, sobretudo quando se discute a dicotomia pluralismo versus monismo jurídico. Pretensões universalizantes derivam, muitas vezes, de um ideal civilizatório ditado por epistemologias hegemônicas. Nesse contexto, insere-se a questão da capacidade civil do cidadão indígena.
Em breve síntese, cumpre destacar que, no ordenamento jurídico pátrio, o Código Civil de 2002 dispõe somente que “a capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial”. Ocorre que a legislação especial vigente é o Estatuto do Índio (Lei n. 6.001/1973), diploma que antecede diversos documentos importantes sobre o tema, como, por exemplo, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007), a Convenção n. 169 da OIT, ratificada pelo Brasil em julho de 2003, e a própria Constituição Federal de 1988. Todos esses documentos citados possuem uma clara diferença em relação ao Estatuto do Índio: aqueles consagram a auto identidade dos povos nativos, este adota uma perspectiva integracionista.
Esse integracionismo pode ser visto, por exemplo, no art. 1º, quando este dispõe que o objetivo da lei é integrar os índios, “progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”. Também pode ser observado no art. 4º, que classifica o indígena conforme seu “grau de integração” em três categorias, a saber: isolados, em vias de integração e integrados. O que nos interessa, porém, é o art. 8º, que diz que são nulos quaisquer atos praticados entre um “índio não integrado” e qualquer pessoa estranha à comunidade indígena. Este, e outros dispositivos do mesmo diploma, evidenciam uma noção que permeia todo o Estatuto, sobretudo quando este condiciona o indígena a uma tutela específica e limita o exercício de sua capacidade civil. A noção de que a condição de índio é uma categoria transitória, fadada a eventual assimilação pelo padrão civilizatório considerado como ideal.
A negação de uma organização cultural que não segue padrões hegemônicos é, de acordo com Sara Araújo, justificada por uma linha abissal imposta pelas pretensões universalizantes e pelos parâmetros de sociedade civilizada conforme definidos pela ciência moderna. A autora ilustra isso quando sugere uma monocultura do universal, na qual as peculiaridades das sociedades indígenas seriam invisibilizadas pela lógica global, ou seja, pelas formas de organização social conforme as “epistemologias do Norte”. O Direito não é
alheio a esse fenômeno, tal como se verifica na perspectiva integracionista do Estatuto do Índio, que institui um regime tutelar específico para “auxiliar” o indígena a se inserir nessa lógica global.
Ocorre que essa perspectiva foi superada pelos documentos internacionais citados anteriormente, e, sobretudo, pela nova ordem constitucional instaurada com a Carta Magna de 1988. Apesar disso, os dispositivos do Estatuto do Índio que limitam a capacidade civil do indígena e veiculam essa lógica integracionista permanecem em vigor. Diante da inércia legislativa, os tribunais têm sido mobilizados a se manifestarem sobre o tema, sobretudo na última década. As decisões vão no sentido de afastar a responsabilidade do Estado por atos de indígenas e de não condicionar o acesso à justiça do índio à representação da FUNAI. É o que se verificou em decisões como a do TRF da 3ª Região que, em 2017, na Apelação Cível 0001099-58.2010.4.03.6006 MS, afirmou que o regime especial tutelar do Estatuto do Índio, que limita a capacidade jurídica plena do indígena, não foi recepcionado pela ordem constitucional de 1988. No mesmo sentido, o STJ, em 2020, no REsp 1685058, afirma que os índios possuem plena legitimidade processual, em decorrência de sua capacidade civil, contrariando, mais uma vez, as disposições limitantes do Estatuo do Índio.
Portanto, verifica-se que os tribunais têm consagrado a perspectiva multicultural trazida na atual Constituição e nos documentos internacionais referentes ao tema. Ao negar a noção de índio como categoria transitória, não o condicionando a qualquer forma de integração como requisito para o exercício de direitos, reconhece-se válida, ainda que de forma tímida, uma forma de organização não hegemônica.
Pedro Olivatto Zanutto
Nota da Monitoria: texto enviado por e-mail no dia 06 dez. 2021, 11h56
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