O romance “O Conto de Aia” de
Margaret Atwood, primeiro publicado em 1985, traz à tona um cenário que, apesar
de intitulado utópico, não é distante de hoje ― a onda conservadorista que tem
assolado o mundo nos últimos anos abre a discussão para uma “implícita”
concretização da história: um Estado totalitário à sua época, com censura midiática
e ainda, efetiva dominação masculina e religiosa. Vivendo em uma sociedade fundamentalista
como era, as mulheres eram divididas em diferentes “castas” de acordo com sua
função ― as férteis, que sendo estupradas, gerariam os filhos de outras, as inférteis,
com o propósito de manter a raça humana viva.
É nesse momento em que um acórdão
do Supremo Tribunal Federal, de 2012 ― que julga a procedência do pedido de ADPF 54,
que “declara
a inconstitucionalidade de interpretação em que interrupção da gravidez de feto
anencéfalo é conduta tipificada, nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II,
todos do Código Penal”, como cita seu relatório ― também deve ser
abordado, com sua devida atenção. A discussão de um caso como este, em que se
pondera direitos como dignidade à vida, à saúde, e livre arbítrio, em uma
questão tão delicada como a interrupção de uma gestação, ainda se nota traços da
presença de um Direito que se pauta, em contraposição a teoria pura do direito de
Kelsen, como resultado de relações de força, como coloca o sociólogo francês
Pierre Bourdieu. É tratado como uma abordagem radical e violenta, reafirmando e
promovendo desigualdades ― tendo em vista que o aborto, apesar de ilegal,
acontece, e àquelas dotadas de maior capital, de forma segura e particular.
Nesse caso, como o ministro Marco Aurélio configura “cárcere privado em seu
próprio corpo”, se trata de reconhecer às mulheres direitos que tanto historicamente
como legalmente tem sido recusados.
Quando Bourdieu insere o conceito de habitus como sendo uma “estrutura
estruturante”, referindo-se à internalização de valores que aderimos como norteadores
de nossa vida, tem-se no campo jurídico também sua expansão. Sua prática e discurso
constituídos, ao mesmo tempo, por relações de força específicas e lutas de
concorrência, dentro de sua própria estrutura dão forma a chamada “violência
simbólica”, uma coação não física que causa dor/constrangimento de caráter
social, psicológico e emocional quando não se atende ao que é, implicitamente,
esperado.
Assim, a chegada da temática anteriormente citada ao STF indica
sua negligência no processo legislativo ― e portanto sua afirmativa em estabelecer
dentro de sua própria estrutura, num determinado espaço dos possíveis, sua
violência simbólica . O supremo, ao considerar procedente o pedido, nada mais
faz que reconhecer “o mínimo do mínimo”. Assim como em "O Conto de Aia", em sua própria forma dado seu tempo, mulheres vem sendo meramente objetos, produtos de uma dominação masculina, que institui seu poder, hoje, de forma legal.
Júlia
Rodrigues Alves
Direito
XXXVI (noturno)