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sábado, 27 de agosto de 2022

Autonomia sobre nossos corpos sempre.

 


O debate brasileiro em torno da questão da interrupção voluntária da gravidez, foi mais uma vez suscitado com a ADPF 54. De um lado, a ação ajuizada pela CNTS (Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde), defende a possibilidade de interrupção terapêutica da gestação em caso de anencefalia. Para a entidade, obrigar a mulher a manter uma gravidez,  ciente de que o feto não sobreviverá após o parto, fere o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art 1º, inciso III). Já os contrários a ADPF, defendem a manutenção da gravidez obrigatória, em nome da proteção da potencialidade de vida do nascituro, e ainda, a criminalização da gestante que decide por interromper a gestação, ainda que clandestinamente, tipificado nos arts. 124, 125 e 126 do Código Penal. A ADPF em questão foi julgada procedente no plenário do STF, ou seja, foi permitida a interrupção da gravidez em casos de anencefalia, o que caracteriza um ganho considerável para as questões atinentes à autonomia feminina sobre seu próprio corpo. 

Analisando os argumentos apresentados no acórdão à luz da sociologia bourdieusiana, observamos uma luta concorrencial dos agentes do campo jurídico em torno de certas definições, como o conceito de dignidade da pessoa humana, no qual dentro daquele contexto histórico, foi mobilizado em favor da autonomia da mulher, no entanto, já fora utilizado na defesa do nascituro, sendo assim, observamos a racionalização do conceito, sendo ocultada a luta simbólica presente no campo em torno da definição. 

Outro ponto importante, é o precedente que o caso abre em torno da luta pela descriminalização do aborto no Brasil. Já que expande o “espaço dos possíveis” e traz algumas definições concretas sobre questões ontológicas importantes dentro do campo jurídico e médico, como “o que é vida” ou que, na ponderação e sopesamento de valores, mesmo se tratando da potencialidade de uma vida, a autonomia das mulheres deveria prevalecer, sendo colocada a condição reprodutiva feminina como um potencial, um direito, e não dever, inscrito em seu corpo e sua subjetividade, mesmo contra sua vontade.

Luiza David F. Neves 1º Ano - Matutino

 

 

Segundo o sociólogo Pierre Bourdieu, em sua obra "O Poder Simbólico", os conceitos de campo, habitus e capital estão interligados. Nesse sentido, o campo é um espaço social que pode ser classificado, dependo do âmbito de atuação, em científico, jurídico, artístico, econômico e político, que constituem o "espaço social". 

Ademais, a depender dos campos em que o indivíduo tem contato, ocorre a influência na formação do habitus, ou seja, do conhecimento cultural elementar às decisões a serem tomadas. Sob essa perspectiva, a proximidade dos interesses e a afinidade dos habitus favorecem a semelhança de valores dos agentes. 

Desse modo, a partir da análise da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, cujo debate é sobre a interrupção da gravidez em casos de feto anencefálico, observa-se o conflito entre os progressistas e conservadores. Estes se utilizavam do habitus religioso e moral, a fim de delimitar o conceito de "vida" e se opor à interrupção. Àqueles, contudo, utilizavam-se da ciência médica para contrapor as opiniões conservadoras, de maneira a defender, racionalmente, a dignidade da mulher, a liberdade sexual e reprodutiva, a saúde e a autodeterminação. 

Diante disso, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela aprovação da interrupção da gravidez de fetos anencefálicos, de modo a ir de encontro ao poder simbólico conservador. Nesse viés, a ADPF 54 exemplifica a disputa de poder e ilustra a influência das lutas sociais no campo jurídico do Direito. 

 



Interrupção da gravidez em caso de anencefalia

     A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), alegou de forma fundamentada na Constituição Federal, de que a proibição da interrupção da gravidez em caso de anencefalia baseada na tipificação dos artigos 124, 126 e 128 (incisos I e II), é inconstitucional. Visto que, determinados artigos da Lei Maior, esclarecem direitos que a gestante possui diante dessa circunstância específica. 

     Sob esse viés, é apresentado pelo CNTS os seguintes artigos: Artigo 1°, inciso IV, que reitera sobre a dignidade da pessoa humana. Portanto, a partir desta colocação, pode-se interpretar que a mulher quando obrigada a levar em diante uma gestação a qual sabe que não resultara em uma vida, tem sua dignidade negligenciada, pois sua integridade física e moral é violentada quando a mesma não possui escolha individual se quer ou não continuar com a gravidez, mesmo sabendo dos resultados finais. Ademais, o 5° artigo, inciso II, refere-se ao principio da legalidade, ou seja, se não há lei, a pessoa não é obrigada a fazer ou deixar de fazer algo. E nos artigos citados sobre aborto no Código Penal, não há especificação sobre a gravidez de feto anencéfalo, portanto,não há como a prática ser compulsória. Outro aspecto Relevante é a saúde da mulher, tanto física como psíquica, onde esses são assegurados, pelos artigos 6° e 126, da Constituição Federal. O primeiro, o dita como um direito social, já o segundo como um direito de todos a ser garantido pelo Estado.

     Acerca dessa lógica, se torna evidente o “espaço dos possíveis” desse julgado, onde houve a interpretação racional do problema pelos juristas, utilizando-se dos códigos e da Constituição Federal, para assim se tornar possível dentro do campo jurídico e analogamente na sociedade, a partir das normas vigentes, obtendo um resultado plausível. Portanto, há de se perceber, que existe um conflito entre o Código Penal e a Constituição Federal, que possuem colocações distintas e não específicas para o caso, sucedendo em oportunidades para a interpretação e historicização das normas, com o intuito de contextualizar com a situação presente de anencefalia. Todavia, como esclarecido pelo acórdão do processo, é evidente a supremacia da Constituição. Resultando a proibição da interrupção da gravidez em caso de anencefalia, como inconstitucional.  

ADPF 54: o retrato da sociedade atual

 O Supremo Tribunal Federal emitiu um veredicto, este sendo votado pelos 11 ministros e resultando em 8x2, com abstenção do ministro Dias Toffoli, a favor da livre realização do aborto para bebês anencéfalos. Levando em consideração uma possibilidade de sofrimentos desnecessários à mulher, a maioria se posicionou de maneira positiva à concretização do método, com um dos operadores da jurisdição se colocando de maneira radical, com falas, até mesmo, de que a falta de atividade no cérebro seria como sinônimo de inexistência de vida e, assim, nem deveria ser chamado de “ aborto”¹, corroborando com uma possível interpretação da frase Descartiana - “ penso logo existo”. Entretanto, será que, de fato, a vida se detém apenas na presença ou desprovimento de componentes que configuram a normalidade do ser humano ou essa seria mais uma prática aproximada do conceito de eugenia, muito praticado, por exemplo, pela clínica abortiva Planned Parenthood, de Margaret Sanger, instalando suas filiais nos bairros mais afastados da cidade, precisamente nos locais onde as mulheres negras eram marginalizadas e, sob essa condição, influenciadas a assassinar seus filhos ainda no ventre, como uma forma de controle de natalidade?²

Segundo o dicionário Aurélio, eugenia se define como ” o estudo das condições mais propícias à reprodução e melhora da raça humana  “. Nesse sentido, portanto, será o proferimento de uma decisão como essa não estaria no espaço da tentativa de aperfeiçoamento, gerando, assim, menos sofrimento à mulher e à família, pauta tão defendida por aqueles que se colocam qual favoráveis?

A tentativa de exclusão de alguém por simplesmente ser composto por características físicas contrárias ao comum- mesmo que este posicionamento seja baseado em inúmeras prerrogativas aparentemente boas- é uma das mais tenebrosas práticas que, infelizmente, pelo visto, ainda estão sendo propagadas e eram tão advogadas pelos tempos mais primórdicos da humanidade.  

Depois de todos essa dialética, poderia haver o questionamento acerca da condição feminina e suas dores, sendo, muitas vezes, descartada das visões de todos, como costuma-se dizer. Porém, para se finalizar com todo o período de possível angústia desta mulher, é necessário mesmo tomar uma medida tão drástica quanto tirar a chance de respirar do embrião? Será que, com todo apoio médico, psicológico que existe na atualidade, não é um fato que o aborto é traumatizante e prejudicial à mulher, valendo mais a pena - no quesito de sua saúde mental, além de física, esta sendo por vezes relevada com a questão psicológoca, bastante impactada no gênero feminino- levar à gestação até um período em que seja possível o parto do bebê sem riscos para nenhum dos protagonistas da questão, estes sendo a mãe e seu filho?³

Conclui-se então, após vistas dos argumentos citados, que a decisão proferida por aqueles que deveriam defender o direito de todos é um retrocesso quando há o olhar através das lentes das análises acerca de garantias mais primordiais de um homem na Terra: o direito pleno de nascer e ter sua garantia de exercício da vida até sua morte, ,mesmo que esse não seja o mesmo agir dos seus semelhantes na sociedade e nem tenha seu desenvolvimento humano tal como todos os considerados saudáveis.



¹ Voto do então ministro Marco Aurélio de Mello

²https://blackamericanslavedescendants.com/?p=3879

³ pepsic.bvsalud.org/pdf/rspagesp/v13n2/v13n2a06.pdf















Bourdieu e a ADPF 54

 

O filosofo Francês Pierre Bourdieu em sua principal teoria disserta sobre seu conceito de ‘campos’ e ‘espaço dos possíveis’. Campos são locais de disputas em torno de interesses de determinados grupos, no qual possuem regras e valores, além disso, os campos envolvem relações de poder, pautada em uma desigualdade de capital social tornando uma dinâmica de dominação. Já espaço dos possíveis é a legitimidade existente dentro do campo jurídico, assim para Bourdieu o direito deve evitar uma expressão da ideologia dominante e também uma força autônoma mediante lutas sociais.

Nesse conceito, a partir da analise sobre a ADPF 54 é possível identificar um conflito entre dois distintos campos, sendo eles, o jurídico e o da moral cristã. No caso em debate é julgado o direito ao aborto em caso de feto anencéfalo, é possível a identificação dos fatores pontuados por Pierre Bourdieu. O resultado chegado através da ADPF 54 foi a legalização do aborto nessa situação em uma disputa de 8 votos e a favor e 2 contra, isso evidencia que o “espaço dos possíveis no direito” não esta mais necessariamente restrita ao conservadorismo e a ‘moral’.

A permissão para realizar abortos diz respeito a dignidade da vida da mulher, na qual esta não será forçada a levar a diante uma gestação que não gerará uma vida. Por fim, os resultados dessa decisão mostra um grande desenvolvimento do espaço dos possíveis, onde em um conflitos entre distintos campos, aquele com mais bases científicas predominou, mesmo não sendo historicamente o dominador, afirmando um enorme avanço social.