Diante da incidência de casos em que o Supremo
Tribunal Federal desempenha papel fundamental em grandes questões nacionais,
muito se discute acerca do fenômeno da judicialização, criando um embate entre
defensores e opositores dessa prática. Trata-se, de acordo com definição do
Ministro Luís Roberto Barroso, da decisão de assuntos de grande repercussão
social e política por órgãos do Poder Judiciário, ao invés das instancias
tradicionalmente responsáveis, ou seja, o Executivo e o Congresso Nacional.
Envolve, assim, a transferência de poder para juízes e tribunais. Não consiste,
no entanto, em ato deliberado de vontade política, sendo um fato decorrente do
modelo constitucional adotado. Isso diferencia a judicialização do ativismo
judicial, outro fenômeno que vem ganhando força, o qual representa a escolha de
um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu
sentido e alcance e aumentando a interferência no espaço de atuação dos outros
dois Poderes.
A
judicialização no Brasil se deve, em grande parte, à redemocratização do país,
cujo ponto culminante foi a promulgação da Constituição de 1988. Com isso, o
Judiciário se tornou um verdadeiro poder político, capaz de fazer valer a
Constituição e as leis. Junto a isso, a constitucionalização abrangente
contribui para esse fenômeno na medida em que traz para a Constituição inúmeras
matérias que antes eram deixadas para outros processos políticos. Por fim, o
sistema brasileiro de controle de constitucionalidade também serve para
explicar o avanço da judicialização. Apesar de indiscutível o papel cada vez
mais ativo do Judiciário, não só no Brasil, mas no mundo todo, muito se fala a
respeito de objeções a essa prática, demonstrando uma preocupação com os riscos
para a legitimidade democrática, com a politização indevida da justiça e com os
limites da capacidade institucional do Judiciário. No entanto, observa-se que o
princípio democrático não é ferido levando-se em conta que os juízes e
tribunais devem se ater à aplicação da Constituição e das leis, não atuando por
vontade política própria, mas como representantes indiretos da vontade popular.
Um
exemplo prático em que o Judiciário é convocado para tomar decisões de grande
repercussão, gerando o debate acerca da judicialização e do ativismo judicial, foi
a decisão do STF, em outubro de 2016, ao admitir a execução da pena após
condenação em segunda instância. A partir da maioria de votos, 6 contra 5, o
Plenário entendeu que o artigo 283 do Código de Processo Penal não
impede o início da pena após condenação em segunda instância. Mostra-se um caso
em que o Judiciário é provocado a refletir, a partir da Ação Declaratória de
Constitucionalidade do PEN e do Conselho Federal da OAB, os quais pediam medida
cautelar para suspender a execução antecipada de pena em segundo grau.
Cinco dos ministros deram parecer
favorável de que a pena somente pode ser executada quando forem esgotados todos
os recursos de uma ação. Entre eles, o relator do caso, o ministro Marco
Aurélio, em concordância com a ação movida pelo PEN. Argumenta-se que a
detenção, para fins de cumprimento antecipado da pena, antes do trânsito em
julgado da sentença condenatória, consubstancia caso de prisão não previsto na
legislação brasileira. Afinal, o texto do inciso LVII do artigo 5º da
Constituição Federal – “ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado da sentença penal condenatória”- não admite dúvidas e deve ser
obedecido fielmente. Trata-se do princípio da não culpabilidade, que encara a
culpa como pressuposto da reprimenda, e a constatação ocorre apenas com a
preclusão maior. Uma vez que não se pode equiparar-se as funções
constitucionais exercidas pelo STF e pelo STJ, considerando a temática
criminal, o caso precisa ser julgado até a última instância para que se
comprove a culpa e se inicie a condenação, não podendo ser admitida a execução
da pena após decisão em segundo grau. Nesse sentido, a constitucionalidade do
Art. 283 do CPP não comporta questionamentos. É importante ressaltar, ainda, o
risco de se agravar, com a condenação em segunda instância, um sério problema
no Brasil: a superlotação dos presídios. Observa-se um número absurdo de
pessoas recolhidas provisoriamente, sem que haja o princípio da não
culpabilidade, além de uma tendência de preencher as prisões com pessoas das
classes sociais menos favorecidas, em especial os negros, os maiores alvos
desse tipo de prisão.
No entanto, a decisão do STF optou
por interpretar como constitucional a condenação em segunda instância.
Indiscutivelmente, observa-se o problema da demora para que um condenado
execute sua pena, o que demonstra, de certa forma a impunidade. Busca-se,
assim, que situações em que o réu foi condenado em segunda instância e passou
muitos anos em liberdade ou até mesmo não chegou a ser preso sejam cada vez
menos frequentes. O recurso a instâncias superiores tornou-se forma de protelar
ao máximo a decisão final, e a demora por recurso faz com que o direito da
sociedade de ver aplicada a ordem penal seja deixado de lado. Tal mecanismo
favorece os crimes conhecidos como “colarinho branco”, praticados por sujeitos
de grande poder político ou social. Com a decisão do STF, torna-se mais fácil
condenar crimes de corrupção ativa, passiva, lavagem de dinheiro, entre outros.
É possível defender também a legitimidade de execução provisória após decisão
em segundo grau em virtude do fato de a presunção de inocência, ou seja, o da
não culpabilidade, ser princípio e não regra, podendo ser ponderada com outros
princípios e valores constitucionais. Entre tais valores, cabe citar a
efetividade do sistema penal, que protege a vida das pessoas, sua integridade e
patrimônio, e que, em conjunto com o que está previsto no Art. 5º, inciso LVII,
torna possível a condenação antes do trânsito em julgado.
Observa-se, assim, a razoabilidade
de argumentos favoráveis e contrários à execução da pena após julgado em
segunda instância, apesar de a decisão definitiva do STF ter sido entender que
o Art. 283 do CPP não impede a condenação em segundo grau. Esse exemplo
demonstra a relevância do fenômeno da judicialização e do ativismo judicial.
Diante da complexidade das novas dinâmicas sociais, o Judiciário é provocado a
refletir, não sendo mais apenas aplicador do Direito, mas sim exercendo papel
de reflexão antropológica, sociológica e filosófica. No entanto, apesar de
notável importância desse Poder, não se deve suprimir a política ou o papel do
Legislativo e sua atuação deve ser feita sempre fundamentada na Constituição
para que a democracia seja preservada. Como Barroso afirma, a judicialização e
o ativismo judicial são a solução de grande parte dos problemas, mas devem ser
praticados com cautela e de forma controlada. Afinal, o real problema está na
crise de representatividade e legitimidade do Legislativo, e a reforma política
não é uma questão a ser solucionada por juízes.