No Brasil, ao menos após a entrada em
vigor da Constituição Federal de 1988, algumas questões políticas têm sido
levadas até o Judiciário, por meio das decisões do Controle de
Constitucionalidade, e decididas em sua Casa Maior, o Superior Tribunal de
Justiça. Observando os conceitos e pensamento constituídos na perspectiva de
Bourdieu, apresentada por meio da leitura indicada, além de levar em
consideração outros textos do pensador, já estudados pelo autor destas breves
considerações, será feita a análise da questão da judicialização, da natureza
dos Poderes instituídos no Estado Moderno e que repercutem na maior parte dos
Estados contemporâneos, tomando como paradigma o julgado levado para a sala de
aula, que diz respeito ao aborto de anencéfalo.
Na solidificação do Estado Moderno, a
necessidade de controlar o poder político é, senão o fundamento da própria
expressão da forma estatal, um dos motivos imprescindíveis para que se pense
toda a manifestação que decorre desta institucionalização. O poder político,
até então, era pouco ou nada democrático, de forma que estava distribuído
desigualmente, se for possível considerar alguma distribuição, perpetuando
relações desiguais entre os indivíduos que compunham as sociedades. Tanto a
titularidade quanto a expressão do poder pertenciam a classes privilegiadas.
Com o advento do Estado burguês, entretanto, pautado pela razão e burocracia, a
titularidade do poder foi distribuída elegante e simbolicamente para toda a
Nação que, incapaz de realizar o poder por si mesma, delegava a alguns
representantes esta tarefa. Como se pode ver, faticamente, o poder não foi
distribuído, e exercer alguma forma de poder político é, ainda, algo que é
reservado para poucos. O que mudou, portanto, é como essa capacidade é adquirida,
de forma que a fundamentação última para exercer um cargo político é o respaldo
social que, na forma institucional brasileira, se dá por meio do voto. O cargo
político, também, tornou-se impessoal e temporário, garantindo, em análise
superficial, a renovação e o feedback institucional para que se comensurasse o
capital político. O fundamento onde se baseia esta estrutura institucional e o
meio por onde se garante a titularidade do poder político para o povo é a
liberdade burguesa. Por meio deste preceito, falso ou verdadeiro, impregnado em
todos os Ordenamentos Jurídicos do mundo Ocidental, a possibilidade de acesso
ao cargo político é, por mais que se esqueçam, a titularidade por via normal do
poder político, e a titularidade por via
anormal é representada pela possibilidade de revolução.
O mundo jurídico, por sua vez,
constitui um campo de atuação distinto de todos os outros campos e
característico apenas de si mesmo. A complexidade que recebe o Direito nas
sociedades Ocidentais concebe, por meio da assimilação de métodos e linguagem
de acesso próprios, um mercado que possibilita a manifestação de determinados
atores, mercado que constitui capital e, aparentemente, um capital distribuído
de maneira muito desigual. Este capital é reclamado por diversos atores do
campo jurídico e, na perspectiva do estudo de Bourdieu, fica distribuído por
uma lógica dicotômica em que de um lado estão os Doutrinadores, Professores de
Direito e, de outro, os Magistrados. A lógica é espectral, ou seja, pode-se
observar, mais ou menos, para qual dos dois acumuladores de capital jurídico
tende a balança a tender, mas dificilmente, para não dizer que é impossível,
estará concentrado absolutamente. Os fundamentos do campo jurídico, como estuda
Bourdieu, estão pautados, por meio da linguagem técnica-burocratizada, sobre a
necessidade de se alcançar uma decisão imparcial, o respeito às colocações de
cada um dos agentes no processo e o respeito às decisões passadas. Estes
fundamentos criam e são criados pelos limites do campo jurídico, assim "as
divergências entre os "intérpretes autorizados" [do direito] são
necessariamente limitadas e a coexistência de uma pluralidade de normas
concorrentes está excluída por definição da ordem jurídica". No processo
para alcançar este fim, o da inexistência da pluralidade de normas e de fontes
do Direito, estruturas de uma hierarquia do Direito, constata o autor que há a
apriorização, que se trata da neutralização e universalização da análise,
produzindo um discurso jurídico impessoal.
No Estado brasileiro contemporâneo, a
provocação do sistema Judiciário tem sido cada vez maior, de forma que as mais
variadas matérias do cotidiano são decididas por meio de pareceres e decisões
técnico-jurídicas, que sustentam-se, no cerne da população, sobre a reverência
que se tem aos Doutores, aqueles que, assim como constata Bourdieu, concentram
algum capital jurídico e ganham a possibilidade de participar deste universo de
agentes limitados e de manifestações controladas e concentradas.
Não discorrerei sobre minha
perspectiva em relação à tomada de decisões políticas que, como demonstrei
recorrentemente em sala, está pautada sobre a natureza do processo decisório,
crendo que a breve análise da legitimidade de cada uma das manifestações
constitui o suficiente para que o leitor a compreenda. Desta forma, avanço para
o caso do julgado que diz respeito ao aborto de anencéfalo sob esta
perspectiva.
É fato que, por meio do Controle de
Constitucionalidade, o Judiciário é provocado a decidir politicamente. Este
processo consiste em uma das manifestações de invenção do campo jurídico e de
seu ator principal que está presente no STF, o Magistrado. Esta invenção pode
ser para ampliar, “extensio”, ou restringir, “restrictio”, determinado direito.
Como observado por Bourdieu, a prática do Direito pode ser observada neste
caso, pois uma disputa ou litígio de fato foi utilizada para provocar o campo
jurídico, que trouxe a discussão e a argumentação para a estrutura
especializada do Direito, imparcial e neutro, para que fosse feita uma
manifestação pública acerca do conflito. Perfeitamente, uma decisão de cunho
político foi legitimamente tomada pelo campo jurídico, de forma a corrigir o
problema, suprimir o litígio. O respeito às decisões anteriores, como apontado
por Bourdieu, é um dos fundamentos do campo do Direito e, assim, vinculam-se
todos os litígios do Ordenamento à esta decisão. Casos únicos, com
características próprias, utilizados como força vinculante. Ora, é necessário
que seja considerado, também, o todo. De que forma é possível que, decidindo
sobre o caso A, pode-se saber que a decisão seria tomada também para B? De que
forma é garantido que a decisão não se vinculou a pressões externas ao campo
jurídico? Como é possível que uma decisão vinculante, fonte de Direito, contrarie
uma Lei, fonte maior do Direito no Ordenamento brasileiro?
Os litígios precisam ser resolvidos,
mas é necessário que se considere que a forma como a decisão política tem sido
tomada, sem provocar novamente o processo Legislativo, deixa vagos diversos
questionamentos, causa insegurança e impossibilidade de ser, efetivamente,
justo. Me parece que a crença, ou a
reverência prestada ao Judiciário, trata-se da própria incapacidade não apenas
dos titulares do poder de materializá-lo, mas dos representantes que
convencionou-se que deveriam cumprir este papel. Ao invés de repensar as
estruturas, delega-se todo o controle a outro Poder institucional do Estado e
nesta atitude, no mínimo, mantemos um Poder Legislativo que pode ou não
participar do processo que lhe dá nome: legislar.