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sexta-feira, 8 de junho de 2018

Embates de forças externas

    O ramo jurídico, suscetível a variados mecanismos interpretativos concernentes à sua natureza estrutural, inspira renomados intelectuais, tais quais Pierre Bourdieu, a realizarem valiosas análises sobre inerências e peculiaridades do meio. Torna-se possível, desse modo, o estabelecimento de conexões entre esses estudos e recentes decisões e questões polêmicas do ordenamento jurídico brasileiro. 
    Sob esse prisma, cita-se, em um primeiro plano, a Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) utilizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) em virtude do desrespeito aos princípios constitucionais do artigo 1°, referente à dignidade da pessoa humana, do artigo 6° (caput), do artigo 5°, tratante da legalidade, liberdade e autonomia da vontade, bem como do artigo 196, no que tange ao direito à saúde. O causador de tal lesão refere-se ao conjunto normativo pelos arts. 124, 126 e 128 (incisos I e II) do Código Penal, já que juízes e tribunais vêm usufruindo inspiração deste em detrimento da Constituição Federal quando o tema circunda a proibição de se efetuar a antecipação terapêutica do parto nos casos de fetos anencéfalos. 
    Nesse sentido, pode-se relacionar a ideia de Bourdieu nesse aspecto, haja vista sua linha de raciocínio voltar-se contra Hans Kelsen e seus seguidores no momento em que os mencionados aludem à independência do Direito em face das forças externas, perspectiva que, de acordo com o pensador e com o caso, não são concretas, quando há a percepção de divergentes forças, isto é, diferentes agentes, tentando adaptar o ordenamento jurídico segundo seus próprios fundamentos e pressões sociais. Uma possível exemplificação do decorrido verifica-se na interpretação de Barroso, na qual buscou-se demonstrar que a antecipação terapêutica do parto não consubstancia aborto, em decorrência do último abranger a vida extra-uterina em potencial, o que não ocorre com o ser anencéfalo. 
    Ademais, ao defender a dinâmica do Direito como um engendramento da lógica positiva da ciência com a lógica normativa da moral, perpetua-se, assim, uma hierarquização de campo, inibitória de discrepantes interpretações, como ocorre na situação brasileira, da qual o conservadorismo e a moral judaico-cristã são preponderantes nos cidadãos do país, fazendo com que determinada visão de aborto, geralmente em um nível de defesa da vida do recém-nascido, seja imposta. Daí o uso da expressão "espaço dos possíveis" pelo autor, ressaltando os constantes limites à hermenêutica do campo jurídico, ainda mais na visualização de mandamentos religiosos contrastando com princípios feministas, defensores estes do direito à saúde da gestante, a qual torna-se prejudicada pela permanência do feto anencéfalo, nos âmbitos físico, moral e psicológico. 
    No entanto, como consequência direta de um maior atendimento do meio jurídico aos anseios hodiernos populacionais, os "operadores" do Direito, durante a atividade prática do mesmo, imbuem-se de uma adaptação das normas ao caso concreto, fazendo com que exista uma luta simbólica de interpretações, sendo uma baseada na teoria pura enquanto a outra nos aspectos circunstanciais da realidade. É clarificada essa situação quando Nelson Hungria, em "Comentários ao Código Penal", coloca que "não está em jogo a vida de outro ser, não podendo o produto da concepção atingir normalmente vida própria, de modo que as consequências dos atos praticados se resolvem unicamente contra a mulher." Outrossim, há a interpretação de que não se viabiliza qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade à mulher gestante, constituindo o parto um alto risco. 
    Percebe-se, pois, como o Direito é suscetível à atuação das forças externas e da lógica normativa da moral, características estas promotoras da transformação do ordenamento jurídico em um campo de enfrentamento hermenêutico. 

Giovanna Siessere Gugelmin - Direito - Matutino - Turma XXXV.











A instrumentalidade da linguagem aplicada ao direito concreto

Nem o instrumentalismo e nem o funcionalismo das visões kelseniana e marxista foram capazes de completar o sentido do ordenamento jurídico. Basear-se exclusivamente num universo positivo rígido ou em um materialismo histórico que apenas indica o direito como objeto de manutenção de poder. O direito deve ser pensado além dessas duas perspectivas, considerando o corpus que se dá através da teoria e da prática e, hodiernamente, da interpretação dada pelos sujeitos de direito.
Essa interpretação concerne à linguagem jurídica impessoal e neutra utilizada para embasar decisões e normas jurídicas. Além da interpretação, a luta simbólica que se revela entre o conteúdo prático da lei é resultado de uma luta entre os profissionais dotados de competência técnica e social, gerando desigualdade de mobilizações.
Apesar de existirem diversas interpretações, estas são monopolizadas pelo poder judicial, já que o direito produz efeitos por si só e faz o mundo social, sem deixar de lembrar que é feito por este. Dessa forma, o trabalho jurídico se manifesta na subtração das normas de uma ocasião particular, fixando uma decisão modelo. Pode-se considerar, portanto, as decisões judiciais como um mecanismo de universalização que exerce dominação simbólica, através de regras e princípios oficiais.
 Para que o direito cumpra seu papel de exemplo ele deve rejeitar a conceito de ser constituído como instrumento de dominação e também como construção alheia à pressão social. O processo histórico, o conflito de competências e as obras jurídicas que delimitam o espaço dos possíveis são essenciais para a formação do direito concreto. Assim, a interpretação da ordem jurídica possui certos limites mediante a realidade.
Além disso, os doutrinadores  e os operadores do direito são de suma importância para que se entenda esse conflito de competências estabelecido por Bordieu. Um sistema que se entregue apenas aos doutrinadores corre o risco de se fechar de maneira que passe a deixar de ser influenciado pelas realidades e ocasiões concretas.
O julgamento de temas conflitantes na sociedade exige o trabalho conjunto desses doutrinadores e dos operadores do direito. A aplicação simplesmente do campo teórico à situação particularizada exprime aquela lei universal e impessoal, desprovida de peculiaridades necessárias e apresentadas pela realidade. Dessa forma, ao discutir-se judicialmente a questão do aborto de fetos anencéfalos, a simples aplicação e subsunção da lei positivada não é suficiente para a solução do conflito. A oposição entre os votos dos ministros pauta-se também nessa competência do Judiciário decidir caso que ainda não foi transformado pela lei, ou, conforme aponta Bordieu, o direito não se deixou modificar pela prática.
Além disso, a discussão desses doutrinadores e operadores, utilizando dessa interpretação e linguagem estranha à maioria que seria atingida pela decisão judicial que previsse a procedência do aborto, não é eficaz e não alcança com clareza as famílias e os indivíduos que carecem dessa decisão em específico. Invocar o ordenamento jurídico e não a realidade social nem sempre é a melhor solução, mas sim uma solução kelseniana, a qual aqui refuta-se.

A competência do legislativo e do judiciário aglutinam-se mediante tais casos, que necessitam da junção entre os operadores e doutrinadores, para que a interpretação dada à realidade corresponda aquilo que o direito deve ser, histórico e conforme a realidade.




Heloise Moraes Souza - Diurno