Atualmente, no Brasil, é possível constatar o papel cada
vez mais ativo e central que o Judiciário tem desempenhado em questões de
grande importância nacional. Tal fenômeno, denominado
"judicialização" por Luís Roberto Barroso, tem emergido com
intensidade, não só em nosso país, mas em todo o mundo, desde o fim da Segunda
Guerra Mundial. Tem se delineado, incontestavelmente, uma maior fluidez entre a
política e a justiça, à medida que a justiça constitucional avança sobre o
espaço originariamente exclusivo da política.
A judicialização da política
consiste na decisão, pelo Judiciário, principalmente o Supremo Tribunal
Federal, de questões de grande relevância política ou social. Ocorre, neste
contexto, uma transferência de poder para juízes e tribunais. Tal fato, no
entanto, não é uma opção ideológica ou metodológica da Corte, mas sim, uma
consequência do modelo institucional brasileiro; dessa forma, o STF somente
interfere nas questões em que é provocado a se manifestar, cumprindo seu papel
determinado na Constituição.
Entre as causas determinantes do
fenômeno da judicialização está o processo de redemocratização, responsável por
aumentar a demanda por justiça na sociedade e fortalecer o Judiciário, que
adquiriu poder político, transformando-se no órgão com competência para
efetivar a Constituição. Outros fatores são a constitucionalização abrangente,
que, através da expansão de preceitos constitucionais para todos os âmbitos
políticos e sociais, permitiu o surgimento de pretensões jurídicas mais amplas;
e o forte sistema de controle de constitucionalidade brasileiro.
Ao lado da judicialização, porém
proveniente de origens diferentes, encontra-se o ativismo judicial. Este, ao
contrário do primeiro, consiste numa escolha do Judiciário por um modo
específico e proativo de interpretar a Constituição. Com o intuito de promover
a máxima potencialidade da Constituição e concretizar os princípios inseridos
nesta, os tribunais exercem uma participação mais ampla e intensa, chegando,
muitas vezes, a interferir na esfera dos demais poderes. As principais condutas
que expressam esse ativismo são: aplicação direta da Constituição em situações
não expressamente disciplinadas por ela, declaração de inconstitucionalidade a
partir de critérios menos rígidos que os convencionais e imposição de condutas
ou abstenções do poder político em relação às políticas públicas.
Um exemplo ilustrativo dessas duas
formas de expressão do protagonismo do Judiciário no cenário sociopolítico
(judicialização e ativismo) foi a recente decisão do Supremo Tribunal Federal
em relação à união homoafetiva. Diante da inércia do poder Legislativo frente
às demandas decorrentes das transformações sociais, o governo do Rio de
Janeiro, juntamente com a Procuradoria Geral da República e algumas ONG's
interessadas recorreram à Justiça para reivindicar direitos igualitários para
casais homoafetivos. O Supremo, então, reconheceu a união estável homoafetiva
como entidade familiar, estendendo as mesmas regras e direitos da união entre
casais heterossexuais. Tal decisão assegurou aos homossexuais direitos como
herança, comunhão parcial de bens, pensão alimentícia e previdenciária,
inclusão como dependente em plano de saúde, dentre outros.
Trata-se de uma nítida expressão da judicialização combinada
com aspectos de ativismo, uma vez que o STF utilizou uma intepretação
progressista e extensiva dos preceitos constitucionais para legitimar sua
decisão e assegurar direitos fundamentais. Ademais, o presidente do Supremo,
Cezar Peluso, pediu que o Congresso regulamentasse posteriormente a questão,
fato que pode ser considerado uma espécie de interferência no campo de outro
poder.
Segundo argumentos dos ministros, era imprescindível que a união
de pessoas do mesmo sexo fosse reconhecida, visto que tal relação é um fato, e
dos fatos nasce o direito. “O direito existe para a vida e não é a vida que
existe para o direito”, portanto, se a sociedade evolui, o direito deve
acompanhar tal evolução. Como fundamentação, foram utilizados princípios
constitucionais fundamentais como igualdade, liberdade, segurança jurídica e
dignidade da pessoa humana. Também a proibição do preconceito e da discriminação,
bem como o pluralismo, foram invocados para legitimar o julgamento. Os
homossexuais possuem a mesma dignidade humana que qualquer indivíduo, sendo,
portanto, sujeitos de direitos de igualdade, liberdade e intimidade. Visto que
a Constituição nada dispõe sobre o assunto, é possível guiar-se pela ideia de
que tudo aquilo que não é proibido, é permitido. O princípio do pluralismo
possibilita a interpretação não-reducionista do conceito que família que, por
ser extremamente subjetivo, pode incorporar as mais variadas relações afetivas.
Ademais, num Estado laico, a moral religiosa não pode ser parâmetro para
limitar a liberdade das pessoas, portanto, não cabe a discussão sobre os dogmas
cristãos acerca da homossexualidade. O único motivo para não reconhecer esses
direitos fundamentais aos homossexuais é o preconceito, que deve ser combatido
veemente em nossa sociedade.
Neste contexto, vale ressaltar a necessidade de atuação
contramajoritária do STF em determinadas questões, vislumbrada por Barroso.
Muitas vezes, para garantir direitos fundamentais de minorias, o Judiciário
precisa contrariar a vontade da maioria, visto que a democracia não se resume
ao princípio majoritário. O Supremo é o intérprete final da Constituição,
portanto, deve atuar como fórum de princípios – não de política – e de razão
pública - não de doutrinas políticas ou religiosas abrangentes.
A importância crucial do Judiciário é inegável, no entanto,
ela não pode suprimir a política ou o papel do Legislativo. Dessa forma, é necessário
que tal poder somente interfira para preservar a democracia e os direitos
fundamentais, sempre fundamentado na Constituição. Além disso, é essencial que
tenha consciência dos limites de sua capacidade institucional, para não causar,
ao realizar a microjustiça, efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejáveis,
como, por exemplo, um desequilíbrio na economia da administração pública devido
a decisões extravagantes.
A ampliação da atuação da Justiça, quando feita sob a égide
da legalidade e sem um caráter populista, pode ser um mecanismo favorável à
democracia. Se não fosse a decisão do Judiciário na questão da união
homoafetiva, provalmente, até hoje o Legislativo estaria mantendo-se inerte em
relação a essa demanda tão crucial para a sociedade contemporânea. No entanto, foi dado apenas o primeiro passo. A concretização dos direitos dessas minorias requer amplas e numerosas ações governamentais afirmativas. Por outro lado,
tal fato evidencia a dimensão do problema de legitimidade que o Brasil
enfrenta, visto que, devido à ineficiência dos tradicionais poderes eleitos
democraticamente, os cidadãos têm recorrido a um poder não eletivo para suprir
suas “carências”. Diante da atual crise de representatividade, legitimidade e
funcionalidade do governo, a expansão do Judiciário é uma forma de suprir a omissão
e a ineficácia e atender às demandas sociais. No entanto, não podemos nos
iludir e apostar no STF como “salvador da pátria” e nos esquecer da urgente
necessidade de reforma política. É preciso combater as causas da enfermidade, e
não apenas ministrar remédios que minimizem seus efeitos.
Para finalizar, nas palavras de Barroso
[...] o ativismo judicial, até aqui, tem sido parte da solução, e
não do problema. Mas ele é um antibiótico poderoso, cujo uso deve ser eventual
e controlado. Em dose excessiva, há risco de se morrer da cura. A expansão do Judiciário
não deve desviar a atenção da real disfunção que aflige a democracia
brasileira: a crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade do
Poder Legislativo. Precisamos de reforma política. E essa não pode ser feita
por juízes.”
Thainara Righeto - 1° ano Matutino