Total de visualizações de página (desde out/2009)

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

O Fechamento das Lotéricas e a Magistratura do Sujeito: Uma Análise Sócio-política de Franca

 

Antes de partir para uma análise que vise situar o caso ocorrido no plano de protagonismo dos tribunais, é importante entender o mérito da ação ajuizada contra o decreto do prefeito de Franca. 

Em março de 2021 – mês em que o decreto do prefeito foi efetuado – o Brasil perdeu 66.573 vidas. Em uma reportagem da BBC News, dados mostravam que a cada cinco mortos por Covid em nosso país desde o início da pandemia, um deles tinha vindo a óbito no mês de março. Tendo isso em mente, surge a questão: Por que um juiz interiorano efetuaria uma decisão destilando desinformação no auge de um dos momentos mais trágicos da história de um país?

A resposta para tal questão não é simples e passa pelo plano histórico da cidade de Franca. Um local que certo dia foi o pólo industrial de sua região, hoje assiste efetivamente aos efeitos da desindustrialização do país, sendo diretamente afetada em uma situação constante de insegurança econômica e aumento substancial da pobreza. Daí, surgem os efeitos observados na decisão de Carlos Bonemer Junior, que utiliza dos mais vulneráveis como escudo para um discurso negacionista e que, até certo ponto, deve ser analisado com cuidado pelo o que ele representa.

Em plena verdade, há de fato um problema grave do ponto de vista administrativo em fechar estabelecimentos bancários do dia para noite, uma vez que milhares de pessoas possuem compromissos graves a serem cumpridos no pagamento de suas faturas e, caso não os cumpram, sofrerão as conseqüências absurdas dos juros imorais dos bancos brasileiros. Contudo, o debate acerca disso deve ser feito na problematização da autonomia do setor financeiro em fazer o que bem quiser, não em cima de uma decisão prudente que visa apenas salvar vidas.

Segundo Garapon, a judicialização é um fenômeno político-social, e tal afirmativa pode facilmente ser analisada no caso em questão. Quando um assunto de viés econômico e que afeta diretamente o dono de um determinado negócio e todos aqueles que dependem dele chega aos tribunais em um momento de crise, é escancarado o reflexo político de um país em situação caótica de “nós e eles”.

Por fim, cabe salientar que até certa medida, Carlos Bonemer Junior efetuou em sua decisão a Magistratura do Sujeito, colocando-se no local de indivíduos que sofreram com a crise econômica que o país atravessou durante a pandemia. Utilizando de um discurso anti-ciência e propagando opiniões conservadoras, o juiz francano de fato efetua a defesa de um ponto e de um determinado grupo que seria colocado em situação de vulnerabilidade com a decisão da prefeitura. Com isso, mais do que evidente a questão do protagonismo dos tribunais em barrar até mesmo a voz do executivo, é colocada em perspectiva a questão complexa de nossa nação, que em pleno momento de crise é colocada contra a parede quando entre seus cidadãos existem aqueles que devem escolher entre se proteger e se alimentar. Quando se trata de Brasil, o buraco é sempre bem mais fundo.

Pedro Basaglia - Direito, Noturno.

 "Apologia ao estupro em trote da UNIFRAN" sob a ótica de Garapon 

    Antoine Garapon expôs, no sexto capítulo da obra "O Juiz e a Democracia", explicação e defesa da necessidade de expansão das influências do poder judiciário frente às demandas do terceiro milênio posterior a Cristo. Um caso concreto que exemplifica tal ampliação foi a sentença proferida pela juíza Adriana Gato Martins Bonemer acerca do destino do ex-aluno da UNIFRAN Matheus Gabriel Braia, acusado de misoginia. A situação é exemplo de uma dentre as várias demandas que, segundo Garapon, chegaram recentemente ao judiciário, e têm contribuído para inflar ainda mais as funções dele. 

    A aparição  recente desse tipo de caso às cortes se dá, para o pensador, em razão de que documentos como a regulamentação do divórcio e a limitação da autoridade paterna sobre os filhos, na França, apareceram pela primeira vez em meados de 1890. Vale ressaltar que, no Brasil, palco de atuação de Bonemer, o primeiro saiu em 1977 e, o segundo, apenas em 1990. De qualquer forma, há, nos dois casos, elementos para se entender que, por muito tempo, uma moralidade ambígua e favorecedora do lado dominante encarregou-se de decidir o destino de grupos minoritários, que, uma vez cientes da presença escrita de certos direitos seus, não puderam mais abandonar a máquina judiciária, por mais que ela fosse morosa e que o magistrado, consciente da natureza caseira do conflito, tratasse-o com certo desprezo. 

    Acerca da demanda supramencionada, que nada tinha de caseira,  consistia na exigência de que Braia pagasse quarenta salários mínimos ao Fundo Estadual de Interesses Difusos e Coletivos por ter entoado, no momento de um trote universitário, hino segundo o qual ele prometia abusar das calouras e elas respondiam que estariam à disposição sexual dos veteranos. É imprescindível perceber, nesse ponto, que o processo só se deu pelo que Tocqueville, citado por Garapon, chamou de "expansão da democracia", que fez das mulheres sujeitos de direito e que incomoda Bonemer, uma vez que ela alegou que "Apesar de vulgar e imoral, o discurso do requerido não causou ofensa à alegada coletividade das mulheres". Desse modo, fica nítida a diferença entre a previsão e a efetivação de um direito, uma vez que as pessoas do sexo feminino, apesar de tidas como iguais em relação aos pares masculinos pela Constituição Federal, cujo Art. 5° proíbe qualquer discriminação (inclusive de gênero), não foram respaldadas na sentença. 

    Garapon explica que o julgamento formal de questões outrora relativas à moral justifica-se pelo fato de que a sociedade evolui mais rápido do que o texto constitucional. No caso em questão, porém, a interpelação da juíza não sinaliza outro fenômeno que não a involução, pois enquanto a Constituição prevê o acima explicado, a funcionária pública atesta que "A inicial retrata bem a panfletagem feminista que  (...) colaborou para a degradação moral que vivemos". Dessarte, basta observar essa sentença para entender que apesar de ocupar posição crucial na época em que se realizam os ditos garaponianos, Bonemer não agiu de acordo com as indicações do sociólogo, o que lesou não só a sociedade em que ela atua, mas também as adjascentes, porque membros delas puderam inspirar-se na incoerência da juíza. 

Logo, enquanto Garapon esclareceu, em especial nas partes finais do capítulo analisado, que com o crescimento da autonomia do cidadão para recorrer ao judiciário se avolumou também a responsabilidade desse em proteger os desprovidos de independência plena, Bonemer agiu em prol daquele que, de modo deliberado, humilhou calouras. Essa decisão não é isolada, e mostra os perigos da aplicação parcial de teorias, porque, talvez, a impossibilidade pretérita de recorrer ao juiz fosse menos danosa que a situação contemporânea, de formalizar, através dos resultados de um processo, o aval para o machismo universitário. Se, no futuro, textos como esse seguirem a sair dos tribunais, talvez não reste nem mesmo espaço para que as meninas prestem vestibulares, e, nesse cenário, se verá o mesmo medievalismo de outrora, porém mais caro, mais envernizado e decorado com fantoches togados. 


Maria Paula Aleixo Golrks - Direito matutino - 2° semestre