A
obra brasileira “O Cortiço”, escrita por Aluísio Azevedo, é um romance
naturalista do fim do século XIX. Seu enredo é composto pelo cotidiano de um
cortiço do Rio de Janeiro, capaz de retratar um microcosmo da sociedade
brasileira. Com seus vários personagens, há vários fenômenos sociais
demonstrados. Um desses fenômenos seria a quebra de paradigmas, ou seja, a
ruptura com padrões comportamentais pela personagem Pombinha. Sua mãe, Dona
Isabel, a havia criado segundo as regras impostas pela sociedade machista às
meninas, logo, tinha bons modos, era estudiosa, educada e, claro, deveria estar
à busca de um homem para casar. Porém, ao Pombinha se deparar com os homens ao
seu redor, se decepciona e escolhe a homossexualidade e a prostituição,
rompendo com as expectativas de sua mãe e de toda a sociedade, que deixa de
olhá-la com admiração, passando a um olhar de repúdio. Analogamente, esse
ocorrido retrata o objeto de estudo da teoria durkheimiana- desenvolvida também
durante o século XIX-, denominado fato social.
O
sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917) é considerado o fundador da
sociologia, pois seu método científico foi capaz de diferenciar a sociologia
das demais ciências humanas, a partir do estudo dos “fatos sociais”. Segundo o
sociólogo, "É fato social toda maneira de agir, fixa ou não, suscetível de
exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou então ainda, que é geral na
extensão de uma sociedade dada, apresentando existência própria, independente
das manifestações individuais que possa ter.". Sendo assim, extraem-se
três características principais do objeto de estudo em questão: coercitividade,
exterioridade e generalidade. A coercitividade é baseada na pressão
externa/social atuada sobre o indivíduo, para que os indivíduos sigam as normas
impostas pela sociedade. A exterioridade se encontra no argumento de que o fato
social independe das vontades individuais, sendo externo ao ser humano. Por
fim, a generalidade é explicada pelos fatos sociais se repetirem na esmagadora
parcela dos indivíduos da sociedade. Os fatos sociais devem ser tratados como
“coisas”, ou seja, exprimem naturalidade e objetividade, além de determinarem
um conjunto de regras, normas e padrões de comportamento para a sociedade. Com
o respeito a essas regras, Durkheim diz estabelecer-se a coesão social, ou
seja, uma harmonia na sociedade. Nesse panorama, surge a coerção: quando o
homem resiste a seguir o fato social, ele ameaça romper o equilíbrio
estabelecido, cabendo à sociedade reprimí-lo,
a fim de evitar a anomia (deterioração das regras que mantém a coesão).
Tal
repressão, mais evidente quando há resistência ao seguir das regras sociais, é
demonstrada, portanto, na história de Pombinha, de “O Cortiço”. Quando deixou
de obedecer as normas da sociedade, ou seja, ser uma mulher heterossexual,
submissa e “recatada”, escolhendo viver uma vida pautada na homossexualidade e
prostituição, se tornou automaticamente alvo da coerção social, a partir do
desprezo dos habitantes do cortiço e, inclusive, de sua própria mãe, que morre
de desgosto. Esse cenário, infelizmente,
ainda permeia, de modo intenso, a contemporaneidade, em função do persistente panorama
racista, machista e cisheteronormativo do ocidente. Durkheim diz que os padrões
de comportamento estabelecidos em torno desse panorama são aprendidos no
processo de socialização, a partir de instituições que os transmitem, como as
escolas, famílias e igrejas, a fim de adequar o indivíduo à sociedade e
prendê-lo ao estereótipo que lhe é imposto. Atualmente, o fato social sobre o
machismo e suas decorrências ainda se perpetuam, como o estereótipo relacionado
ao gênero sobre atributos que homens e mulheres devem possuir ou sobre funções
sociais que devem cumprir, sem igualdade de direito entre os gêneros.
Em
um âmbito mais interno, foi demonstrado no Brasil, em 2019, o escancarar de
como esses padrões ainda estão muito presentes. A ministra da Mulher, Família e
Direitos Humanos, Damares Alves, afirmou que o país estava em uma “nova era”, em
que os meninos vestiam azul, e as meninas, rosa. Essa fala gerou muitos
aplausos e apoio da população, demonstrando ainda um apego a essa regra social
relacionada ao gênero e, logo, ao machismo. Dessa forma, vários indivíduos
(“Pombinhas contemporâneas”?) que não se identificam com o modelo imposto,
muitas vezes decidem o seguir apesar das discrepâncias com suas aptidões
pessoais e decisões de vida, pois, por estarem sujeitos a esse fato social,
sofrerão coerção caso não o obedeçam.
Apesar
dessas muitas pessoas optarem por não se opor ao fato social, é indubitável o
argumento de que a reação às ações machistas está se fortalecendo
progressivamente, a partir da ascensão de movimentos feministas. Esses,
surgidos nos anos 1960 nos Estados Unidos, reivindicam a igualdade de direitos
civis e políticos entre homens e mulheres, além da liberdade de agir fora dos
padrões impostos. Entretanto, visto que o feminicídio (assassinato de mulheres
e meninas por questões de gênero) ainda é um dos crimes mais cometidos no
mundo, o machismo permanece na mentalidade da sociedade, sendo um fato social
que continua gerando repressões extremamente violentas aos movimentos
reacionários. Entre essas repressões, encontram-se agressões psicológicas,
físicas e consequentes mortes sofridas por várias mulheres. A fala da ministra
revela, portanto, que o contexto brasileiro, infelizmente, ainda corrobora esse
fato social, tornando o Brasil como o 5° país com mais casos de feminicídios no
mundo, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos
(ACNUD), de 2019.
Logo, percebe-se que o
microcosmo da sociedade brasileira do século XIX, representado em “O Cortiço”
ainda se mantém intacto, mesmo 200 anos depois. O machismo ainda se mantém
intacto como fato social. Com suas nefastas consequências, é necessário que a
luta feminista não deixe de ocorrer, para que o machismo deixe de se apresentar
como generalizado, coercitivo e externo na sociedade. Para que mulheres não se
sintam culpadas ao sair das celas comportamentais em que foram aprisionadas.
Para que não sofram a pressão coercitiva. Para que não recebam o mesmo
tratamento de Pombinha. Segundo Paulo Freire, “O mundo não é, o mundo está
sendo”, ou seja, o machismo, apesar de tão perene nos últimos séculos, não deve
ser algo permanente no mundo, muito menos continuar contendo as características
do objeto do estudo durkheimiano.
Ana Marcela Nahas Cardili- 1°ano Direito Matutino