A dúvida é uma constante na vida de todos. O mundo faz-se
a partir de cada escolha individual e, pensado dessa maneira, a dúvida frente
cada alternativa faz-se ainda maior. E é exatamente essa a maneira como penso.
Ainda no colégio, nem a opção pela carreira a seguir era certeza absoluta,
tantas eram as implicações! Muito estava em jogo. Hoje, como profissional do
Direito, e sem ainda total certeza acerca da decisão tomada no Ensino Médio,
mas por certo com maior solidez de objetivos, deparo-me com a história de Flavinho.
Menor,
marginalizado, deliquente. Sim, é a mesma figura do garoto que você viu ontem
no noticiário, ou das centenas de outros garotos igualmente estereotipados. Mas
não o encaremos assim. Flavinho é, sobretudo, uma pessoa. Embora nem ele mais
faça tanta questão de se lembrar disso.
Fato
é que nossas histórias se cruzaram quando sua mãe, exausta de aplicar-lhe
sermões e corretivos quase que diários, por descobrir-lhe facínora, procurou-me
a fim de saber se dessa vez, pelo amor de Deus, o filho poderia ser preso. “A
disciplina da cadeia talvez ensine”. A resposta óbvia e imediata foi que não,
que o menor é considerado incapaz e, portanto, não está apto para responder em
juízo, e que a sanção viria de outra maneira. Acontece que a dúvida da mãe perturbou-me
e remeteu-me a discussão aparentemente infinda acerca da maioridade penal.
De
que ótica analisar casos como esses? Cartesianamente, encararia Flavinho como
uma peça a mais em todo ordenamento mecanicista e que, portanto, deveria ser
imediata e objetivamente reajustada para o bom funcionamento da máquina. Mas
como se daria tal reajuste? Seria ele suficiente para manter o complexo sistema?
Lembremo-nos,
porém, que a essência do ser não está na matéria, mas em suas conexões. Do ponto de vista sistêmico, o homem
não pode ser analisado individualmente, como peça solta, formar-se-ia uma visão
distorcida e unilateral acerca dos fatos. Consertar uma só peça e deixar que as
outras continuem defeituosas resulta em novos problemas futuros. Da mesma
forma, somos parte de uma rede inseparável de relações.
Flavinho
deve pagar por seus crimes, isso é parte do contrato social e da nossa ideia de
justiça;, ele deve ser acertado às normas. Acontece que duvido exatamente da forma
como essa adaptação ocorre. Mesmo que Flavinho ainda não possa ser preso,
assegurariam a ele as fundações para menor alguma base de valores? E se tais
instituições já caíram amplamente em descrédito, o que de diferente o real cárcere
poderia promover aos fins de restituir o jovem à sociedade de forma “ajustada”?
É
impossível resolver os problemas fragmentando-os, como sugeriu Descartes. Flavinho,
e tantos outros excluídos socialmente, são mero reflexo do sistema. A discussão
sobre maioridade penal ganha, assim, traços mais amplos, que abrangem
percepções de campos sociais diversos, como o econômico, político, educacional.
De
Descartes, mantenho o princípio da dúvida, mas nego-me à visão mecanicista de
mundo. A humanidade é essencialmente interdependente e deve ser encarada como
tal. Somos o sistema.