Historicamente, os estudos da ciência jurídica nas universidades sempre se atentaram muito mais aos aspectos técnicos e burocráticos do direito do que às possíveis soluções dos problemas que de fato assolavam a sociedade. Criava-se, portanto, nessas universidades uma ciência plenamente jurídica, pura em essência, uma vez que apolítica e idealista, porém, sem qualquer respaldo significativo ao povo.
O modelo positivista, a metodologia definitiva adotada durante anos nessas faculdades de direito, pautava-se unicamente na criação de um direito autossuficiente, sem influências de campos do conhecimento externos a ele. Ou seja, os estudos engendrados pelos juristas positivistas tinham como fim a formação de uma verdadeira ciência fechada em si própria, e, por conseguinte, desvinculada da realidade circundante.
Dentro desse contexto, passou a ser observável o fato de que a alienação do direito frente a todo e qualquer conhecimento moral ou social fomentou uma formação de juristas e magistrados contaminados com entendimentos que, embora formalmente de acordo às constatações jurídicas, de nada serviam para findar com as atribulações sociais. Um distanciamento altamente pernicioso foi criado a partir de então, uma vez que a atuação dos membros do corpo jurídico não atendiam às necessidades do povo. Tais quais sábios em torres de marfim, a cognição limitada apenas ao direito incapacitou os operadores do direito de solucionarem as aflições vigentes na sociedade.
Exemplo evidente dessa abordagem jurídica é a decisão da juíza Márcia Loureiro a respeito da ação de reintegração de posse da empresa Selecta na região de Pinheirinho. Tal caso é emblemático nesse sentido, visto que, totalmente alheia da distribuição desigual das terras no Brasil e adotando uma visão em favor do “proprietário” da terra, a juíza em questão optou pela desocupação de cerca de 6000 pessoas na área, todas elas desempregadas e sem onde morar. Muitas provas apontavam para a ilegalidade na posse da região de Pinheirinho, uma vez que a empresa não cumpria a função social da terra, que encontrava-se improdutiva, assim como investigações atestaram a ausência de documentos necessários para a comprovação da posse, obtida provavelmente de maneira ilícita.
A partir de tudo isso, mesmo diante de tantas provas contra a empresa Selecta, a juíza decidiu pela desocupação das famílias da área, uma decisão judicial completamente desumana e alienada da verdadeira condição rural brasileira. Numa nação devastada pela desigual distribuição das terras agricultáveis, não se poderia nunca esperar uma escolha como essa partindo do Judiciário, que deveria favorecer os desfavorecidos e oprimidos, no caso em análise, as famílias desapossadas.
Tendo em vista esse caso, um símbolo da invisibilização dos problemas sociais por parte da ciência jurídica positivista, além de uma representação assertiva da ineficiência da mesma em combatê-los, Boaventura de Sousa Santos defende uma reformulação do ensino do direito nas universidades, visando justamente o maior preparo do operador do direito para atender às demandas sociais, o que, por sua vez, facilitaria o acesso do cidadão comum à garantia dos seus direitos. Tal novo ensino defendido pelo jurista busca deixar de lado o alto tecnicismo do direito, focando muito mais no uso de seus preceitos frente às soluções dos casos concretos. Abandona-se, portanto, a neutralidade do ensino jurídico, a qual o desvinculava da realidade, adotando, consequentemente, uma ciência jurídica conscientizada, que elucide o operador do direito, a fim de que o mesmo obtenha uma visão panorâmica do contexto circundante, o que, por sua vez, favorecerá na sua devida atuação na resolução dos conflitos sociais.
É nesse sentido que Boaventura afirma que: “Uma extensão emancipatória assenta numa ecologia de saberes jurídicos, no diálogo entre o conhecimento jurídico popular e científico, e numa aplicação edificante da ciência jurídica, em que aquele que aplica está existencial, ética e socialmente comprometido com o impacto de sua atividade.”. Ou seja, o jurista português advoga a favor de uma universidade que dê aos seus alunos o conhecimento necessário para que os mesmos atuem conscientemente, como operadores do direito que executam seus deveres de acordo com a realidade que os rodeia, isto é, levando em conta o contexto social e político da sociedade em que trabalham.
Visto que esse modelo de ensino apresentado por Boaventura tem por base uma conscientização do operador do direito, cabe às universidades, por conseguinte, engendrar uma educação jurídica que, nas palavras do autor, “deve ser uma educação intercultural, interdisciplinar e profundamente imbuída da ideia de responsabilidade cidadã, […]”. Essa educação terá por premissa, portanto, a adoção de outros campos do conhecimento como essenciais para a formação profissional do estudante, como a sociologia e a economia, além de combater, deste modo, a análise positivista da ciência jurídica, alienada das adversidades que afligem o povo. Ter-se-á, consequentemente, uma formação jurídica adequada ao contexto social, algo que impedirá que mais decisões injustas, com a proferida por Márcia Loureiro, sejam adotadas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário