No filme Ponto de mutação, vê-se a defesa de uma série de pontos de vista. Dentre tais pontos de vista, há uma crítica de certas teses centrais que, na história do pensamento ocidental, surgiram, principalmente, com o advento da teoria do conhecimento cartesiana. Considerando essa perspectiva, o objetivo desse texto é a construção de uma possível refutação àquela crítica (ao cartesianismo). Dentro desse objetivo, dividiremos nosso texto em três partes: em um primeiro momento faremos, com breve no trabalho de Leopoldo e Silva, uma exposição que, aqui, adotaremos para o cartesianismo; em um segundo momento, retomaremos as nhás gerais da concepção epistemológica apresentada em Ponto de mutação; em um terceiro momento, procuraremos oferecer uma refutação dessa concepção epistemológica.
Dentro desse objetivo, podemos começar considerando a nossa concepção de cartesianismo. Tal concepção entende que o pensamento de Descartes, na verdade, inaugura uma tradição cujos principais representantes seriam: o próprio Descartes, Leibniz e Espinosa. Leopoldo e Silva explica que esses autores seriam caracterizados por concederem extremo valor aos tipos de método empregado pelas ciências axiomáticas como a matemática e lógica. Essas ciências seria caracterizadas, principalmente, pelo fato de que, nelas, se parte de algumas verdades claras e irrefutáveis (claras e distintas, no linguajar de Descartes) e, a partir delas, se procura deduzir todas as outras verdades.
Esse tipo de concepção fica bastante clara quando vemos que Descartes preconiza uma divisão dos problemas em problemas menores. Esses problemas menores, por sua vez, podem encontrar soluções passíveis de permitir a solução dos problemas maiores. Se seguirmos esse tipo de ideal de construção do conhecimento, seríamos capazes de organizar nossas ideias em perfeitas cadeias dedutivas.
Feito tais comentários, cremos, de uma maneira geral, ter conseguido expor o tipo de interpretação do cartesianismo que nos interessava. Apesar disso, antes de passarmos ao próximo dentre os tópicos que enunciamos no início, acreditamos ser razoável expor nossa concepção a respeito da importância do cartesianismo para um ideal de ciência que sobrevive até os nossos dias: no nosso ponto de vista, a ciência moderna é mais cartesiana do que uma decorrência do empirismo clássico. Essa nossa opinião decorre da própria atitude dos principais filósofos que, na contemporaneidade, se colocaram como defensores da ciência: os positivistas lógicos; esses autores foram muito influenciados pelo Tractatus lógico-philosophicus de Wittgenstein. O autor dessa obra defende o ponto de vista de que, embora a ciência parta da observação empírica, tal ciência, pelo menos em ideal, procura construir sistemas lógicos que podem ser pensados por analogia com sistemas axiomáticos onde se parte de elementos empíricos básicos (quase axiomas) e procura-se organizá-los logicamente; assim a ciência, tal como queria Descartes (que nunca negligenciou a experiência), é, tão lógico-sistemática, quanto empírica.
Feito esse último comentário, podemos, finamente, passar ao segundo dentre os tópicos que enumeramos. Tal tópico consiste na tese central do filme que mencionamos: o cartesianismo possui um erro latente, uma vez que adota a forma típica das ciências axiomáticas, ao procurar dividir o saber em partículas cada vez menores, ele gerou, ao longo história uma especialização, cada vez maior, dos saberes; isso fica bastante claro no pensamento do já citado Wittgenstein que, tendo sido bastante influenciado por Espinosa, teve seu pensamento, muitas vezes, cognominado de “filosofia do atomismo lógico”.
Essa concepção atomista do conhecimento é extremamente criticada em Ponto de mutação. Essa obra propõe uma concepção mais complexa do conhecimento e defende que as diversas áreas do saber estão a tal ponto conectadas que é impossível e também é um erro pensá-las separadamente.
Após esse comentário, cremos poder passar à parte final de nosso texto. Em tal parte procuraremos oferecer uma refutação das teses do filme que mencionamos. Para isso, iremos retomar uma tese de Wittgenstein. Esse filósofo mostrou que é da própria natureza da linguagem tender representar as coisas; não é difícil perceber isso, se pensarmos que, quando falamos, queremos sempre estabelecer limites claros naquilo que dizemos. Ora, nos irritamos quando não somos bem compreendidos, e para obtermos tal compreensão precisamos de algo essencial à lógica: o princípio identidade; tal princípio é base das ideias claras e distintas dos cartesianos, e é a única forma de se falar com clareza.
Sendo assim, o atomismo lógico (ou cartesiano) não é errôneo, uma vez que, como mostra Wittgenstein, ele é a principal condição de possibilidade de um ideal de clareza e comunicação: se posso reduzir conjuntos de proposições (ou áreas da ciência) em conjuntos cada vez mais simples e claros (ciências, empiricamente, mais elementares, ou axiomas), estou, cada vez mais, conseguindo ser mais claro.
Isso, obviamente, não significa que não se possa encontrar conexões ocultas ou complexidades por traz das ciências. Tais “conexões ocultas”, no entanto, estão para além dos limites da lógica e, consequentemente, não podem ser representadas ou ditas com clareza; tais conexões, embora pareçam obvias a alguns, somente podem, para usar uma linguagem típica a Wittgenstein, ser vivenciadas na experiência místico-silenciosa de cada indivíduo. Com isso, pode-encerrar esse texto com uma frase que resume nossas opiniões a respeito das teses apresentadas em Ponto de mutação: “Daquilo que não se pode falar, deve-se manter o silêncio” (Wittgenstein)