Querida vó,
Essa já é a centésima carta que lhe escrevo, uma por semana, desde que você entrou em coma. Já são quase dois anos desde o acidente. Chego a pensar que esses escritos parecem mais um diário do que as minhas atualizações de vida pra senhora, mas eu precisava de algo pra substituir nossos cafés semanais. E, sabe, lá no hospital é muito difícil, não consigo falar tudo que preciso pra você com o pai e a mãe por perto, às vezes com o enfermeiro na sala. É como se eu não pudesse ser eu na frente de todo mundo. Então faço as cartas.
Queria te contar mais em voz alta sobre minha namorada, a Mari, mas ainda não falei pro resto da família que eu sou uma menina que gosta de meninas, sabe, vó? Lésbica, como te expliquei. Você me diria que não tem nada de errado, eu bem sei, falaria que eu sou quem tenho que ser. Mas é complicado...Por mais que eu me entenda comigo mesma, é como se algo estivesse me pressionando pra não falar disso. Assunto proibido. É errado? Pra mim, não, mas eu sei o que significa para as outras pessoas, e é muito difícil carregar o peso de ir contra um comportamento convencionado.
A Mari parou de depilar a perna essa semana, vó! Você já pensou no porquê de a gente nunca tentar isso? Ela disse que refletiu e entendeu que precisava diferenciar o quanto se sentia confortável sem pelos na perna porque queria se ver assim ou porque queria que as pessoas não encarassem ela de outra forma. É sobre decidir se quer uma ação “de você por você” ou “de você pela sociedade”, ela disse. Mesmo que a linha seja muito tênue, no final das contas. Não acho que a gente tenha alguma vontade não tocada pelas pressões do coletivo, sabe? Mesmo no que é mais particular, a gente traz essa influência do que é externo. Uma mistura que só, vó...O que será que você diria? Sempre falou que não ligava pro que as pessoas pensavam, mas até quem não liga acaba tendo esses pensamentos como referência (pra concordar ou discordar).
Dizem que nesse mundo onde a sociedade influencia muito do que somos, tudo caminha pra um certo equilíbrio. Mesmo que o externo esteja sempre acima de nós, por fazer muita pressão em nossas vidas, isso não seria tão ruim, porque é em nome de uma harmonia...É como se a gente fosse se adaptando ao mundo e ele fosse mudando com o tempo (sempre pra melhor?). Sei lá. Eu não vejo equilíbrio nisso, vó, eu vejo tanta disputa. Uma disputa entre os grupos que dizem como a sociedade deve ser- os mais poderosos- e outros que, ou seguem as regras, ou não ligam pra elas, como a senhora, e, às vezes, quebram as regras. Pra mim, isso é sobre conflito, não equilíbrio, sabe? E me encontro cada vez mais no grupo que não quer ligar pra essas normas, mesmo que ligando, já que elas servem de referência, né? Ainda que para serem transgredidas.
Em harmonia ou conflito, dá pra entender que essas ordens existem. E quando a gente nota, tá sendo influenciada por elas: seja em não falar com você no hospital por não me sentir à vontade com pai e mãe; não conversando abertamente sobre minha namorada com as pessoas, por mais que eu não veja nada de errado em nossa relação ou ainda não refletindo sobre como quero conviver com meus pelos da perna. Queria saber o que você pensaria, vó, do que se lembrará quando acordar e quem será depois de alguns anos não convivendo com tantas dessas regras. Se é que você pensará assim. Afinal, por mais que a sociedade continue existindo com suas normas e a senhora esteja longe delas agora, essas regras permanecem dentro de nossa mente, né? Volte pra me contar.
Abraços,
Sua neta.