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domingo, 13 de novembro de 2022

A busca por uma hermenêutica diatópica: a ADPF 186 como um caminho possível para se falar da realidade.


A questão sobre as cotas raciais sempre ensejou debates tanto no campo social e político, quanto no campo jurídico, tal fato decorre não apenas das mudanças sociais ocorridas ao longo do tempo, mas também devido ao poder simbólico, intrinsecamente ligado ao acúmulo de recursos desses campos, o qual define a capacidade de exercício do domínio. É mediante essa perspectiva que Bourdieu expõe que numa luta propriamente simbólica há uma definição do mundo social conforme alguns interesses capazes de impor no campo das tomadas de posições. Desse modo, fica claro que falar de cotas raciais na contemporaneidade é garantir direitos, perpassando, assim, o habitus até então incorporado, ou seja, uma matriz cultural que predispõe os indivíduos às certas escolhas e a determinados comportamentos sem questionar, por exemplo, as desigualdades raciais. Diante do supracitado, é importante examinar a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 186, a qual instituiu o sistema de reserva de vagas com base no critério étnico-racial. 

Cabe analisar, a princípio, que há um conflito expresso no litígio: de um lado, a ideia de que as cotas para negros nas universidades “geram a consciência estatal de raça, promovem a ofensa arbitrária ao princípio da igualdade”; e de outro, a ideia de justiça social, buscando o reconhecimento e a incorporação na sociedade de valores culturais diversificados, e essencialmente, a desmistificação da democracia racial, que, por muito tempo colocou a sociedade brasileira como tolerante e inclusiva. Entretanto, cabe deixar evidente que no Brasil, a pobreza tem cor; a disparidade econômica e racial não é produto do acaso, uma vez que a desigualdade decorre de um contexto de segregação e mazelas; assim como a abolição do regime escravocrata não apagou o código racial que até hoje viceja dissimuladamente nas relações sociais do país, o que decorre da ausência de políticas públicas eficientes capazes de incluir e assegurar iguais condições às etnias afrodescendentes no contexto social, e é dentro desse ponto que entra a insuficiência de políticas universalistas que visam apenas o aspecto econômico para combater a disparidade de índices de desenvolvimento humano entre brancos e negros no Brasil, haja vista que injustiça racial não se manifesta apenas no campo econômico, mas também na cultura e na violência simbólica, ou seja, é preciso uma visão interseccional dos fatos. 

Nesse sentido, aduz que, a existência de tal conflito na prática, apresenta-se apenas como aparente, tendo em vista que o princípio da igualdade material está previsto no art. 5º, da Constituição Federal;  no artigo 206, I, III e IV, que o acesso ao ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: “igualdade de condições para acesso e permanência na escola”; “pluralismo de ideias”; e “gestão democrática do ensino público”; a Constituição determina a “valorização da diversidade étnica e regional” (art. 215, § 3º, V); assim como no artigo 2°, II, da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, da Organização das Nações Unidas, ratificada pelo Brasil em 1968, segundo o qual ações afirmativas são “(...) medidas especiais e concretas para assegurar como convier o desenvolvimento ou a proteção de certos grupos raciais de indivíduos pertencentes a estes grupos com o objetivo de garantir-lhes, em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos do homem e das liberdades fundamentais”. 

Ademais, cabe mencionar ainda que, embora suceda um conflito dentro do espaço dos possíveis, haja vista a existência de uma interpretação restritiva acerca dos direitos individuais, por exemplo, o direito à dignidade da pessoa humana art. 1º, III; à vedação ao preconceito de cor e à discriminação, art. 3º, IV; à igualdade art. 5º, caput; à legalidade, art. 5º, II; pode-se aduzir que há um considerável espaço dos possíveis capaz de validar o direito às cotas raciais, uma vez que existe a Lei nº 9.394/96, sobre as universidades deliberar acerca de critérios e normas de seleção e admissão de estudantes; a Lei nº 10.172/01, a qual apresenta objetivos para o ensino superior de criar políticas públicas que facilitem às minorias, vítimas de discriminação o acesso; a Lei nº 10.558/02 que visa a integração de grupos desfavorecidos socialmete; a Lei nº 10.678/03, que busca a promoção da igualde racial; e por fim, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, internalizada ao ordenamento pátrio pelo Decreto nº 65.810/69. Isso está relacionado ao conceito de racionalização da norma de Bourdieu, ou seja, a norma não deve estar a favor de um segmento social, deve se fundamentar em seu caráter universal ou neutro, o que cabe salientar, entretanto, que tais questões não estão atreladas à ausência de posicionamento, mas sim de uma busca de uma decisão racional, relacionada ao campo social e suas exigências constitucionais, como no caso apresentado, em que existe sim a possibilidade de racionalização da norma, haja vista que se trata de uma parcela da sociedade que não possuem seus direitos assegurados na prática e que precisam de amparo da justiça. 

Sob esse âmbito, ao reconhecer tais mecanismos que assegurem os direitos às minorias, é possível falar da historização da norma preconizada por Bourdieu, uma vez que as mudanças sociais e as inovações devem fazer parte da agenda do judiciário, ou seja, cabe ao campo jurídico assegurar os direitos advindos conforme a mudança do campus social, neste caso, a implementação das cotas raciais como um direito material capaz de “reparar” o racismo estrutural de uma sociedade patriarcal, elitista e racista. 

Dito isso, para Garapon, a transferência do poder ao judiciário para assegurar essa busca de direitos, está relacionada a uma judicialização que decorre de um fenômeno social, ou seja, a sociedade que chama a justiça no intuito de ajudar os indivíduos sofredores modernos. Tal questão, manifestada pela magistratura do sujeito, aparece como uma prática de aprofundamento da democracia, capaz de tutelar os indivíduos desamparados, contribuindo para que o direito se transforme em uma moral por ausência, o qual invade a intimidade e o autogoverno. Com isso, a ausência de políticas públicas eficazes, como um caminho possível que se destoa da via jurídica, mas passível de assegurar a igualdade entre os indivíduos do campus social, por exemplo, faz com que o juiz se coloque em um lugar de autoridade faltosa, que intervém nos desejos particulares do cidadão, ou seja, tutela a busca de igualdade, justiça social, promoção da dignidade da pessoa humana e no caso em estudo, a busca por legitimidade constitucional das políticas de ação afirmativa, especialmente as fundadas em critérios étnico-raciais. 

A mobilização do direito, portanto, decorre, segundo McCann, das ações de indivíduos, grupos ou organizações em busca de seus interesses e valores, como na presente ADPF 186, que teve como interessada a Universidade de Brasília, primeira instituição a implementar o sistema de cotas no Brasil, a qual com base na realidade elitista dos cursos de ensino superior, buscou mesmo que tardiamente, 2004, a implementação do sistema de cotas. Diante dessa perspectiva, fica claro que as ideias levadas à justiça modelam cálculos de interesse e motivações para a ação, ou seja, tais interesses buscados devem ser entendidos em termos de visões e ideais emergentes, que movimentam o judiciário para que os anseios sejam atendidos e assegurados. Resumidamente, os tribunais se tornam poderosos, principalmente, em virtude dos regimes políticos modernos referentes às diversas demandas sociais que ganham destaque quando o foco está nos sujeitos e nas lógicas institucionais diversas, os quais recorrem aos tribunais.

Diante dessa perspectiva, o resultado da mobilização modifica o contexto imediato para lutas posteriores não apenas no campus social, mas também no campus jurídico. Isso decorre devido à punição jurídica de uma conduta não mais tolerável, o que contribui para o aumento do espaço dos possíveis e a legitimação de mobilizações futuras. Para McCann, “os tribunais contribuem, de modo ativo, a traçar o panorama ou a rede de relações na qual se encontram as demandas judiciais em curso dos cidadãos e organizações”, isto é, o poder de influenciar condutas dentro do que é normativo e não mais inconstitucional. 

Assim como, nessa mesma linha de raciocínio, o resultado da mobilização transforma a  cultura social geral e a compreensão de assuntos cotidianos, por meio da afirmação de uma boa e legítima sociedade, que encoraja os outros a aceitarem as mudanças sociais que influenciam na garantia de direitos de todo o corpo social, principalmente, quando relacionado aos princípios constitucionais ligados à igualdade e à dignidade da pessoa humana, baseada na máxima “não existe direitos iguais em uma sociedade desigual”.

Por fim, falar em cotas raciais, segundo Sara Araújo e Boaventura de Sousa Santos, é desafiar o cânone hegemônico e ultrapassar a linha abissal, ou seja, é pensar em uma epistemologia do sul que tenha como origem pontos não hegemônicos capazes de ultrapassar o pensamento moderno que impõe e estabelece os limites de uma linha abissal que divide o mundo entre o universo “deste lado da linha” e o universo “do outro lado da linha”. A monocultura, advinda do ocidente, manifesta-se por meio do saber e do rigor do saber, ou seja, transforma a ciência moderna em única e válida; pelo universal e global; pela produtividade; pela naturalização das diferenças; e pelo tempo linear. Dentro dessa perspectiva o direito associado às ideias “de racionalidade, neutralidade, objetividade e justiça, faz com que a linguagem jurídica moderna assuma um papel fundamental na legitimação do modelo dominante, colonial e capitalista, difundindo uma alegada ordem natural”. 

Com isso, visando em uma ecologia de saberes e em uma ecologia de justiça, é preciso uma perspectiva do direito para além de uma visão formal de igualdades, perpassando a linha abissal, e conseguindo falar do direito por meio de perspectivas distintas, como a racial, de gênero e cultural presente na ADPF 186. Desse modo, por meio de uma hermenêutica diatópica, é possível legitimar as ações afirmativas raciais, não tendo como base uma única cultura, mas o reconhecimento da pluralidade e transformação das diferenças verticais e horizontais. 

Nesse ínterim, a ADPF 186, apresenta um aspecto de antecipação expressa, tendo em vista o contexto histórico-social, permeado por preconceitos e desigualdades, os quais contrariam os princípios constitucionais; a ideia de que as ações afirmativas são procedimentos adotados para promover uma maior equidade no acesso à educação, haja vista o espaço acadêmico da universidade ser altamente segregado racialmente; assim como a significativa contribuição para às políticas de promoção à cidadania por sinalizarem direitos constitucionais da coletividade que foram relegados às margens da dignidade humana. Com isso, diante de tal questão, percebe-se uma ampliação da democracia, tendo em vista a proteção das minorias e o reconhecimento da existência do racismo estrutural que permanece nos diversos setores da sociedade, e a deslegitimação do mito da democracia racial que ainda se mostra presente no discurso dos conservadores. Ademais, reconhecer o direito às cotas raciais garante que a democracia acompanhe os desafios do presente e isso contribui para os movimentos sociais ganhem notoriedade na busca por igualdade social.  


Aluna: Natália Lima da Silva.

Turma XXXIX de Direito matutino.