Não é uma surpresa para ninguém as
marcas que o lado norte deixou nas terras ao sul do globo quando resolveram se
aventurar pelos espaços que, até então, eram ocupados por “selvagens”, que, por
sua vez, "necessitavam urgentemente dos ensinamentos europeus". Ou pelo menos,
esse foi o discurso dos homens brancos que adentraram pelas terras meridionais.
Contudo, não foi apenas efeitos longínquos que foram deixados nas histórias dos
que habitam abaixo da linha do equador, ainda hoje, o cânone hegemônico desses
povos invasores influência em tudo que é realizado ao sul do planeta.
Nessa perspectiva, a autora Sara Araújo
na sua obra “O primado do direito e
as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone”
disserta em uma perspectiva para se pensar o direito além do convencional, exaltando
uma epistemologia do sul com um pensamento feminino, não branco, não binário,
tudo aquilo que desafia a hegemonia imposta. Sara ressalta que durante a história
"Do outro lado da linha, múltiplos universos jurídicos são desperdiçados,
invisibilizados e classificados como inferiores, primitivos, locais, residuais
ou improdutivos.”. Como reflexo no campo do direito, inúmeros casos jurídicos buscam
validação em posicionamentos presentes na área boreal.
Como
exemplo da presença desses posicionamentos formadores de condutas, tem se a petição
para a cirurgia de transgenitalização pelo SUS, na cidade de Jales – SP. Nesse
julgamento, felizmente, o juiz concedeu a gratuidade para todas as
etapas necessárias para a cirurgia da pessoa. Acontece que, o magistrado,
afortunadamente, traz o fato de a transexualidade não poder ser tratada como
uma patologia, na contemporaneidade, e um dos seus posicionamentos é com o seguinte
trecho:
“No entanto, estudos recentes, no âmbito da
psicologia, o Conselho Federal de Psicologia e a própria França têm considerado
que não se trata de patologia, mas sim de um modo de ser e de viver, de modo
que o sistema público de saúde deve garantir, sempre, a cirurgia, para quem
desejar, desde que haja todo um acompanhamento psicossocial e psiquiátrico.”
O
posicionamento, apesar de certeiro e coerente, demonstra a necessidade de a legitimidade
ser amparada pela atuação de um país hegemônico, como é o caso da França.
Constantemente, as coisas nas sociedades ao sul apenas parecem corretas quando as
ações estão igualmente ocorrendo pelos territórios componentes da Europa, ou
nos Estados Unidos, por exemplo. Nesse sentido, Sara Araújo diz que “O Sul foi
duplamente silenciado: porque alegadamente não tinha nada para dizer e porque
não tinha linguagem para o fazer.” Esse trecho, traz os conceitos de “epistemicídio”
e “linguagicídio” que são desenvolvidos pelo autor Boaventura Santos. É inegável
que um reflexo desse silenciamento, é a necessidade atual de utilizar a voz dos
silenciadores para falarem por nós. E isso é tão intrínseco e enraizado, que nem
sempre é perceptível, mas, constantemente as realidades do sul são moldadas por
ideais setentrionais.
Desse
modo, é conclusivo o desperdício de experiências sociais, já que, são
desconsideradas as condutas não hegemônicas – que por sinal são muitíssimas.
Como um caminho para ultrapassar essa linha abissal Sara pontua "Nesse
sentido, defendo a recuperação do conceito de pluralismo jurídico num horizonte
de reconhecimento de outros universos jurídicos". A pluralidade é
algo que não deve ser limitado, a diversidade é grandiosa demais para ser
colocada em função de um único ideal, romper com essa superioridade hegemônica imposta
é um percurso tortuoso, mas necessário a fim de conseguir dar a devida
legitimação as diversas enunciações de epistemologias do sul.
Maria Fernanda Barra Firmino – 2° semestre matutino