Definido pelas correntes mais tradicionais como a "ação destrutiva do produto da concepção humana", ou como a "interrupção criminosa da vida em formação", o aborto representa um dos temas mais controversos quando posto em discussão. O aborto de anencéfalos, antes tipificado como crime pelo Código Penal, por não constar entre as estritas hipóteses não punidas, após ser julgada procedente a ação para declarar inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção de gravidez de feto anencéfalo configurava como crime, passou a ser permitido sem a necessidade de autorização judicial.
Os oito votos a favor da procedência da ação, contra apenas dois votos contrários, expõe, assim como Bourdieu defendia, que o direito não é apenas um mero instrumento dotado de uma autonomia absoluta, inerte ao mundo social, como um sistema fechado, no qual o peso das reivindicações sociais não consegue exercer nenhuma influência. A liberação do aborto de anencéfalos demonstra que os ministros conduziram o direito para as demandas do caso concreto, o conformando com as novas exigências e circunstâncias provenientes das pressões sociais.
Nesse cenário, o direito não configura-se meramente como um instrumento a serviço de uma determinada classe, mas mostra-se capaz de assimilar os requerimentos provenientes das pressões externas, revelando, segundo Bourdieu, a historicização da norma, na qual uma norma abstrata é colocada na história, a elasticidade dos textos é indicada, adaptando-se às novas circunstâncias, de acordo com o espaço dos possíveis.
No julgado analisado evidencia-se a correspondência da decisão a este espaço dos possíveis, expressão utilizada pelo autor para designar que os resultados de um processo se externalizam de acordo com os freios de estruturas já preexistentes, que limitam o alcance, a possibilidade das pretensões sociais se tornarem um fato jurídico. Poderia haver a investida em descriminalizar o aborto como um todo, mas este requerimento tem que responder ao espaço do possível, aos vetos morais, políticos, reduzindo-se, então, neste caso, à autorização do aborto de anencéfalos.
Os argumentos utilizados pelos ministros favoráveis à procedência da ação se pautam no entendimento de que o anencéfalo não possui potencialidade de vida extrauterina, não havendo a possibilidade dele se tornar uma pessoa, não configurando, assim, como um aborto eugênico, argumento invocado pelos ministros contrários. Além disso, defendem que não há nem mesmo um confronto entre os direitos fundamentais da mulher e os do feto, uma vez que este último não possui viabilidade de vida para tornar-se sujeito de direito, e , dessa forma, se assemelharia à tortura impor a continuidade da gravidez para defender a incolumidade de um feto que não dispõe de potencialidade de vida em detrimento dos direitos da mulher. Já nos votos contrários é perceptível as limitações dos argumentos utilizados, aparentam querer encobrir o arbítrio presente no voto, e revesti-lo da crença da neutralidade para torná-lo legítimo, já que a razão do juiz não pode transparecer nos autos.
Pelo resultado do processo, portanto, nota-se que o direito não pode ser reduzido à manifestação do poder de uma determinada classe dominante, nele revela-se que as perspectivas sociais e suas reivindicações também conseguem penetrar, mesmo que obedecendo as fronteiras do espaço dos possíveis, no campo jurídico. Em uma decisão que poderia contrariar grandes parcelas da população, o Supremo Tribunal Federal, decidiu por oferecer a quem realmente tem legitimidade, ou seja, à mulher, o direito para deliberar pelo aborto, ou não, do feto anencéfalo, em um confronto no qual a saúde, a dignidade, a liberdade, a autonomia e os direitos básicos da mulher sobressaíram.