Sob a perspectiva de Boaventura de Sousa Santos, a indagação sobre a possibilidade de o direito ser uma ferramenta emancipatória apenas pode ser respondida positivamente se tomarmos o Direito como alternativa.
Tal ideia de alternativa pressupõe a existência de outros caminhos e possibilidades, mas reflitamos sobre o direito como a mais plausível e legítima ao tomar a decisão sobre a ADPF 186, apontando a suposta inconstitucionalidade das políticas afirmativas adotadas pioneiramente pela UnB.
O prisma em questão têm como vértices relações e ideologias de desigualdade, ausência e certa descrença. Há também seus opostos; a busca pela igualdade (de fato), a presença, a atuação e a esperança no campo regulativo.
Comecemos pela descrença.
Descrença essa alimentada pela indiferença de outros campos sociais sobre o assunto, varrido sob o tapete de um eterno "não é problema meu"; a inclusão "de fachada", nutrida pela falaciosa democracia racial. O preconceito velado, a negação de um espaço tido como direito, mas afastado pela impossibilidade de desfrutá-lo. Tudo nos leva à percepção de que marcas trazidas por mazelas passadas não foram superadas completa e naturalmente como alguns afirmam.
Afinal, o que resta ao olhar ao redor e em nada se ver? O que resta ao perceber a ausência de seus semelhantes, a ausência de sua cor, de sua representação? Sejamos diretos: o que resta à criança ao não encontrar nenhum exemplo no qual se inspirar, apenas exceções, precedidas pelo garrafal APESAR DE negro, pardo, índio...?
A descrença aí se instaura. O sentimento de não pertencimento não se restringe aos portões das universidades - embora seja esse o questionamento -, mas nos mais diversos ambientes e "degraus" de reconhecimento.
Frente à isso, o que resta? Resta o direito. Não o direito positivamente tido como mantenedor da ordem, do status quo.Mas o direito, nos termos de Boaventura, como alternativa à revolução.
Eis o cume a se desbravar para que outros repitam os passos no caminho à emancipação: a luta não como forma de fuga ou destruição das engrenagens sociais (contrariando o que alguns apontariam como caos, ou pior, segregacionismo semelhante ao hitleriano) mas sim como modo de reconstrução de ideais defasados, revitalização de princípios restritos a teoria, principalmente, objetivando a inclusão.
Garantir? Sim. Como? Descobriremos ao tentarmos.
Há sim, um caminho tortuoso a se percorrer na trilha do direito e da regulação. Há espinhos e fortificações maiores do que se enxerga envolvendo a sociedade civil íntima, a tida como "civilizada". Mas, maior que tudo isso, há a descrença muito professada e revestida pelo desânimo geral.
Falemos, sim, dos espinhos que o direito insiste em perpetuar, mas não esqueçamos de falar das flores que ainda podem vir do mesmo terreno, se desbravado.
Rúbia Bragança Pimenta Arouca
1º ano Direito diurno
Este é um espaço para as discussões da disciplina de Sociologia Geral e Jurídica do curso de Direito da UNESP/Franca. É um espaço dedicado à iniciação à "ciência da sociedade". Os textos e visões de mundo aqui presentes não representam a opinião do professor da disciplina e coordenador do blog. Refletem, com efeito, a diversidade de opiniões que devem caracterizar o "fazer científico" e a Universidade. (Coordenação: Prof. Dr. Agnaldo de Sousa Barbosa)
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quinta-feira, 19 de outubro de 2017
Narrativas de exclusão, o direito e a discussão de cotas raciais no contexto brasileiro.
Ao julgar a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental de número 186, o Supremo Tribunal Federal
reconheceu não só a constitucionalidade das cotas raciais nas universidades e
cargos públicos ou privados, mas também o papel do Estado na desconstrução de uma
narrativa excludente.
É interessante notar a convergência
da regulação e emancipação do Direito, ao mesmo tempo em que há um embate de
narrativas. Como dizem Fabiana Luci Oliveira e Virgínia F. da Silva, em
especial no que tange os discursos em julgados, “Nas narrativas estão contidas
representações sociais e estas exprimem realidades coletivas, são coisas
sociais e produto do pensamento coletivo”¹, assim, esse embate de narrativas é
fruto da heterogeneidade dos grupos sociais, e é saudável para o Direito que
exista, de modo a acarretar em sínteses melhor adequadas, elaboradas, ou
eficazes para o problema enfrentado.
Ainda, no que se refere aos discursos
empregados, é importante notar o viés de negação do problema racial em alguns
trechos da ADPF, chegando a afirmar “[...] que, no Brasil, ninguém é excluído
pelo simples fato de ser negro [...]”², fato demostrado em inúmeras pesquisas,
livros e discussões sobre o assunto, inserindo essa narrativa no chamado “mito
da democracia racial”, já que, apesar de não ter havido discriminação
legislativa na maior parte do país, a situação de desvantagem de negros em
relação a brancos no imaginário coletivo foi construído e mantido por séculos
em reportagens, conversas, discussões, donde se vê até hoje seus efeitos (baixa
representatividade de pessoas negras em cargos de alto prestígio social, maior
taxa de encarceramento, salário menor em relação a colegas brancos que desempenham
uma mesma função, etc) – é mítico acreditar que esses efeitos negativos numa
camada especifica da população se deve a diversos outros fatores menos da condição racial. Lembrando,
porém, que raça é apenas um recurso metodológico utilizado nessas discussões,
já que não encontra respaldo científico, apenas social (é uma ferramenta
demonstrada de exclusão social, que, no contexto brasileiro, se construiu com
base em fenótipos, ou seja, na aparência externa do indivíduo, estabelecendo
uma pigmentocracia entre a população – aqueles de pele mais clara e traços mais
caucasianos, como nariz fino, lábios pequenos, cabelos lisos, etc., têm melhor
inserção social do que aqueles com traços diversos, ainda que dentro da mesma
camada econômico-social, que para Boaventura de Sousa Santos poderia ser identificado
como um problema pré-contratualista, já que é prometido, no discurso cotidiano,
ascensão social a todos os grupos que se esforçarem, não importando sua cor de
pele, gênero, orientação sexual, condição física ou mental.
Outro problema identificável nas
narrativas contrárias à implementação de cotas raciais é a dificuldade em lidar
com uma possível existência de medidas imediatistas e paliativas e medidas que
pudessem inserir todos num mesmo patamar de oportunidades. Quanto a isso, os
ministros do STF identificaram importância e oportunidade de implementação da
discussão nos círculos sociais quando há implementação de políticas de ação
afirmativa, tornando o problema da exclusão social mais palpável, realista,
alcançável, já que camadas populacionais que outrora não teriam tanto contato
entre si poderão construir essas narrativas em conjunto.
Por fim, no âmbito legalista, como primeiranista
não considero ter referenciais suficientes para entrar nesse mérito, me
restringindo a lembrar que a legislação brasileira já possuí, além de
fundamentos constitucionais para a existência de ações afirmativas (como
interpretado no julgamento da ADPF 186, por exemplo) e tratados internacionais
por nós retificados, legislação ordinária tratando do tema (lei 12.711/2012), a
ser revisada em 2022, conforme a mesma, concluindo que, ainda que não realize pretensões de grupos diversos a implementação das chamadas cotas raciais, o Estado Brasileiro atualmente as adota, tendo assumido compromissos internacionalmente para combater o preconceito racial no país, podendo essas medidas serem interpretadas como um modo de combate, utilizando o direito para correção de desigualdades.
- Tatiane E. Lima, 1º ano de Direito - Matutino
¹ OLIVEIRA,
Fabiana Luci; SILVA, V. F.. “Processos judiciais como fonte
de dados: poder e interpretação”. Sociologias
(UFRGS. Impresso), RS, p. 251, 2005.
² ADPF 186/2009, fls. 28.
Entre Fossos, Anzóis e Peixes
O contrato social, assim como o Direito, pela óptica de Boaventura
de Sousa Santos, é uma produção de regulação e controle social, busca manter um
certo status quo que agrade a classe
que o produz, a classe que está por trás da ideologia fundante dessa realidade.
Dessa forma, as classes menos favorecidas no quesito econômico e de inserção social
se encontram desfavorecidas nesse contrato social, sendo seu meio de resposta e
emancipação as lutas sociais, tal como a segurança de um salário mínimo e
férias remuneradas. Isto é, a busca por um intersecção entre regulação
(proveniente do direito preestabelecido) e emancipação (dada pelas lutas
sociais das classes desfavorecidas no contrato vigente), bem como traz o
referido autor em seu texto “Poderá o Direito Ser Emancipatório?”.
Ainda apoiado na exposição de Boaventura, tem-se a
manifestação do fascismo social, ou seja, uma dominação explícita de um grupo
sobre o outro, cria verdadeiros “castelos neofeudais” em que há um enorme fosso
impedindo o transito e intercambio entre esses grupos. Esse fosso materialmente
pode ser pequeno, não ultrapassando o limite de poucos quilômetros, mas quando
se analisa os fatos, essa barreira é intercontinental. Com finalidade
elucidativa tem-se o exemplo do Campus da Unesp Franca e o bairro francano Vila
Gosuen, ou mais popularmente “Puxa-Faca”, isto é, de um lado um centro de
produção a transmissão de conhecimento, de outro um centro de violência e
abandono social. Beira a utopia sonhar com a absorção dos jovens residentes
desses bairros (jovens em sua maioria negros, estudantes da rede pública e
trabalhadores desde uma idade mínima “semi-aceitável”) pela universidade
estadual residida em Franca, isto é, falta a esses o chamado capital cultural,
falta o incentivo e a representatividade de seus iguais, ou aqueles que eles
têm por iguais, dentro da instituição.
Visando sanar essa falta de representatividade universidades
brasileiras tomaram a atitude pioneira de estabelecer um programa de cotas para
alunos desfavorecidos em relação à ampla concorrência do vestibular, como a
cota para o ingresso de negros. Com isso, o Partido Democratas, em 2009, buscou
maiores explicações em relação à legitimidade legal desta última estabelecida
na Universidade de Brasília, argumentando que tal medida era inconstitucional,
contrariando princípios constitucionais, como o da igualdade, ao privilegiar
alguns durante o processo seletivo entrou com o pedido ao poder judiciário de
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (a qual denominou-se ADPF
186). Após análise do Supremo Tribunal Federal determinou-se que o sistema de
cotas é válido e legítimo, uma vez que busca efetivar os direitos de igualdade
e cidadania previstos na Constituição Federal de 1988. Tal decisão se torna
importante uma vez que empodera todo um seguimento social, dá lugar de fala a
quem se encontrava até então calado, dá esperanças de um futuro diferente não só
para o jovem que ingressa na universidade com o auxílio de cotas, mas também
por todos aqueles que o cerca.
“Não adianta dar o peixe, tem que ensinar a pescar” era uma
das mais recorrentes argumentações que se fazia quando o intuito era se opor ao
programa “Bolsa Família” há cerca de uma década atrás, quando o tema estava em
árdua discussão, referindo-se à produção de uma população acomodada que vive
nas custas do assistencialismo governamental. Com o programa de cotas, enquanto
uma ação afirmativa, ensina-se a pescar, coloca o anzol na vara do cidadão,
isto é garante uma especialização profissional e uma bagagem de conhecimentos
que propiciará o desenvolvimento social, cultural e econômico do indivíduo em
conjunto com seu grupo social. Dessa forma, a população que está de fora do “castelo
neofeudal” passa a pescar em seu fosso, a quebrar as muralhas que os mantem de
fora, ao mesmo tem em que se emancipam de tudo aquilo que os prendem à uma
realidade degradante e em certo ponto inferior. O importante é não parar as lutas
com a conquista do sistema de cotas, mas evoluir a educação e as possibilidades
garantidas ao amplo público, cotas são uma medida paliativa, a estática desse
movimento significa a transmutação desses novos pescadores em peixes, como diz
o rapper Criolo “é que o anzol da direita fez a esquerdar virar peixe”, ou
seja, permanece, dessa forma, o controle das classes sociais beneficiadas pelo
contrato social sobre aquelas que não estavam presentes no momento de sua
produção.
Felipe Cardoso Scandiuzzi - 1ª ano - Direito
Matutino
Regulação: prisão ou instrumento de mudança social?
Regulação, cárcere sem grades,
Que faz do jurista pássaro preso numa jaula sem cadeados,
Talvez, por simples conformismo ou desesperança,
Assim, o conservadorismo avança, e a emancipação retrocede.
A regulação proporciona-me uma igualdade formal,
Todavia, sabemos que no material é diferente,
Não trata os desiguais em suas desigualdades.
No entanto, quando o jurista se faz pássaro solto,
emancipado e liberto,
Lutando pelos ideais de justiça e equidade, tanto propagados
na Universidade,
A regulação atinge os antes esquecidos,
As cotas raciais foram finalmente implementadas,
O negro e o índio finalmente adentram o espeço acadêmico,
Produto da regulação do Direito sempre tão julgada,
Fez da isonomia material, minimamente implantada.
No entanto, a dívida histórica ainda não foi sanada,
O racismo persiste e prende Rafael Braga,
Barack Obama é caso isolado, nessa sociedade que mata Luana
Barbosa,
Que nós, futuros juristas, lutemos por um Direito
emancipatório,
Que preserve vidas e atinja a equidade.
Bruna Maria Modesto Ribeiro, 1 ano, diurno
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