Durante o colonialismo, como afirma Sara Araújo em seu artigo “O primado do Direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone”, o Direito ocidental e eurocêntrico serviu como forma de legitimar o acúmulo irrestrito de terras em nome do crescimento e estabilização do capital. Foi este Direito, escrito pelo colonizador, que, ao ditar os limites da legalidade - o que é o “correto” e o “justo” dentro de uma sociedade, que ações [e que categorias sociais que as cometerem] serão punidas pela mão estatal - viabilizou, por séculos, a estrutura colonial que assegurava os privilégios de uma classe, raça e nacionalidade dominante (a burguesa, branca e metropolitana) de enriquecer sobre o subjugo de outros humanos e seus direitos pessoais e comunitários. O Direito não só permitiu, como outorgou ações como a escravidão e - como aqui tratado majoritariamente - o acúmulo fundiário às custas da dizimação das populações indígenas originárias que ali viviam e produziam seus meios de sobreviência. Alegando o terras nullius e invalidando o Direito indígena, invocando apenas o por eles definido para os favorecer, ilegalizavam a posse da terra por quem realmente a trabalhava, para torná-las, muitas vezes, improdutivas, servindo apenas para aumentar o patrimônio de quem as toma.
Da mesma forma - e sendo, os problemas atuais aqui tratados, herança direta dessa forma de colonização e organização agrária brasileira e do Direito eurocêntrico subserviente ao projeto capitalista - expressa-se a ação para a violenta reintegração de posse da fazenda Pinheirinho em São José dos Campos, onde cerca de 10 mil pessoas viviam há mais de 8 anos, onde famílias haviam se estruturado e casas haviam sido erguidas, sendo, aquele enorme terreno abandonado, o único meio destes milhares de trabalhadores e trabalhadoras conseguirem ter um lar para se abrigarem, viverem e sobreviverem. Neste contexto, o Direito, expresso principalmente pelas ações da juíza Márcia Faria Mathey Loureiro, agiu novamente como um braço da ordem burguesa, buscando favorecê-la. A juíza declarou que ela e a legislação consideram equiparável o direito à propriedade improdutiva e que serve apenas para assegurar o lucro da especulação fundiária ao direito básico à moradia, à ter um teto - mesmo que em condições precárias - para um trabalhador proteger a si e à sua família. Porém, além de expressar este aspecto “pró hegemônico” do Direito nesta aplicação superficial da lei, ela o evidenciou na própria ação dos magistrados, já que a juíza buscou ativamente trabalhar para que a reintegração ocorresse de qualquer maneira, cometendo, para isso, irregularidades dentro e fora dos tribunais. Márcia indeferiu liminares, ignorou as tentativas de conciliação e ainda fez propaganda midiática contra a ocupação, violando todo o princípio de impessoalidade e imparcialidade, com o único objetivo de usar o Direito para fortalecer o projeto capitalista neoliberal e matar suas alternativas, por mais sutis que sejam.
O Direito como uma ferramenta para expansão e legitimação do projeto capitalista também se faz presente ao determinar quem terá suas atitudes (muitas vezes sendo a única alternativa para a sobrevivência) consideradas ilegais e sofrerá as consequências da violência, privação de liberdade e desamparo estatal e quem terá suas ações ilícitas, frequentemente cometidas em proporções muito maiores, perdoadas e abafadas pela justiça. O terreno em que a ocupação se estabeleceu estava em situação de ilegalidade mesmo por parte do alegado proprietário à quem a justiça concedeu a causa. A propriedade estava abandonada há décadas, nunca havia pago impostos e possivelmente foi fruto de grilagem. Além disso, o dono estava envolvido em diversos processos de lavagem de dinheiro que nunca tiveram consequências efetivas. E mesmo assim, foram considerados infratores e violadores da lei que ferem direitos, os trabalhadores que residiam no assentamento pelo cumprimento do princípio constitucional da função social da propriedade. Soma-se a isto a questão de que, ao fechar-se para as vozes das minorias, o Direito perde a oportunidade de se enriquecer. Ao ignorar e combater as formas como estas comunidades tradicionais se organizam e resolvem litígios - já que muitas vezes não podem recorrer à justiça formal por conta de sua situação irregular ou por falta de recursos - o Direito perde experiências jurídicas e a chance de incorporar novas e melhores formas de conseguir solucionar os conflitos que superlotam o sistema judiciário (questão que a juíza alega para justificar sua decisão desumana). Deslegitimar outras formas de direito, diferentes daqueles posto somente para atender aos interesses hegemônicos o torna limitado, ineficiente para atender às novas demandas sociais (como a questão da reforma agrária no Brasil) e enfraquecido epistemologicamente.
Sofia Moreira Pinatti
Nota da Monitoria: texto enviado por e-mail 06 dez. 2021, 08h46
Nenhum comentário:
Postar um comentário