Pierre Bourdieu em sua obra” O Poder Simbólico”, procura
demonstrar como os campos buscam produzir efeito nos atos alheios. Mais
especificamente no capítulo VIII intitulado “A força do direito: elementos para
uma sociologia do campo jurídico", ele vai tratar de como o campo jurídico
procura orientar as condutas de outrem através de seus recursos específicos,
que recebem o nome de capital, acumulados pelos indivíduos para situarem sua
posição no campo e estabelecerem suas relações de “dominação” a partir das
regras deste mesmo, e não apenas por uma simples demonstração de poder.
Essa busca por situar-se no campo é o que faz com que o
horizonte das relações sociais seja a distinção e o empoderamento para poder
exercer sua influência. Assim, os agentes e instituições do Direito entram em
disputa pelo “monopólio do direito de dizer o direito”, ou seja, buscam
reconhecimento e destaque os agentes jurídicos tentando fazer com que sua hermenêutica se sobreponha à
do outro, o que fica evidente na ADPF/54, quando Ministros de concepções
contrárias acerca do assunto referente ao aborto de anencéfalos, como o Relator
Marco Aurélio em relação a Cezar Peluso, tentam fazer com que sua visão impere
sobre a do outro.
Diante desse seu objetivo ele vai criticar as visões “rasas”
acerca do estudo do direito, procurando evitar o instrumentalismo, ou seja, a
ideia de Direito a serviço de uma classe dominante, e o formalismo, que entende
um Direito autônomo de influências sociais. Dessa maneira, acaba por criticar
os marxistas estruturalistas por resumirem todas as relações aos meios
produtivos e à classe dominante assim como critica Kelsen e seus seguidores por
reivindicarem autonomia absoluta do pensamento e ação jurídicos, fazendo deles
integrantes, respectivamente, das duas vertentes criticadas.
Ele vai propor que o campo jurídico possui uma lógica
duplamente determinada representada por duas duplas:
1.
As relações de força que orientam as lutas de
concorrência e determinam a estrutura do Direito, representam aqui o processo
de racionalização que conferem uma
universalização, ao expor o que de fato é, e uma neutralização, ao utilizar recursos de impessoalidade, na linguagem
por exemplo.
2.
Lógica interna das obras jurídicas (Doutrina,
Jurisprudência, Constituição e demais normas) que delimitam o espaço dos
possíveis, limitado em um extremo pela moral
e no outro pela ciência. Tal lógica
fica evidente no seguinte trecho do julgado acerca do aborto de anencéfalos: “O único critério a ser utilizado, portanto,
na solução da controvérsia ora em exame é aquele que se fundamenta nos textos
da Constituição, dos tratados e convenções internacionais e das leis da
República e que se revela informado por razões de caráter eminentemente social
e de natureza pública”
Desta forma, todas as decisões judiciárias,
assim como a hermenêutica jurídica, já estão pré-definidas dentro dessa lacuna
de possibilidades. Um exemplo dessa
situação é que o aborto indiscriminado no Brasil é impossível, já que não se
encontra nessa lacuna. No entanto, a interrupção terapêutica em casos de
anencefalia pode ser realizada graças ao acórdão do STF que fez uso de criatividade
embasada nas balizas jurídicas para chegar a tal possibilidade dentro do espaço
dos possíveis.
Outro ponto reforçado por
Bourdier é a ilusão de independência e autonomia do Direito em relação às
forças externas, representadas pelas demandas sociais, já que estas se
infiltram assumindo um certo caráter jurídico para que possam ser aceitas e
interpretadas. Ou seja, não basta que exista uma palavra de ordem, é necessário
que revesti-la no universo do Direito. Nesse sentido o seguinte trecho do
julgado demonstra como a moral e suas reinvindicações de fato influenciam no
Direito, mas que para possuir legitimidade precisam apresentar caráter
jurídico: “Para tornarem-se aceitáveis no
debate jurídico, os argumentos provenientes dos grupos religiosos devem ser
devidamente ‘traduzidos’ em termos de razões públicas” (folhas 1026 e 1027), ou
seja, os argumentos devem ser expostos em termos cuja adesão independa dessa ou
daquela crença.”
O autor traz também o conceito de Violência Simbólica,
definido como uma violência que acomete o psicológico e a moral sem fazer uso
da força física. Nesse sentido, podemos relacionar o Direito e o julgado em
questão tal definição de duas formas. A primeira seria aceitar a condição de
que o Direito exerce uma eficácia simbólica, que se apresenta camuflada de
formalismo e racionalismo, ao definir o que é a vida e seu início e fim,
impondo sua visão ao ordenamento jurídico seguido por todo um país. E a segunda
seria, de certa forma, uma demonstração da primeira, já que, caso o acordum tivesse resultado oposto, ou
seja, permanecesse a impossibilidade desse aborto, os danos morais e
psicológicos decorrentes de uma gravidez com ausência de perspectiva de vida do
feto teriam continuidade e consumariam as consequências dessa violência. Dessa
forma, fica explícito a força coercitiva que faz do Direito um possuidor de
violência simbólica, já que suas decisões, apesar de não acarretarem danos
físicos, podem ocasionar efeitos morais e psicológicos, que nesse caso foram
amenizados com uma decisão jurídica.
Portanto, a visão de Bourdier sobre a estruturação e o modo
de agir do Direito encontram respaldo no ordenamento brasileiro, que pode ser
utilizado como exemplo de diversos conceitos do autor acerca do assunto. Fica
evidente como se dá a disputar por poder de influenciar condutas no campo
jurídico, que faz uso de racionalidade e neutralidade para firmar suas
sentenças. Demonstra, ainda, que uma reinvindicação social só terá legitimidade
para ser interpretada dentro do espaço dos possíveis, delimitado pela ciência e
pela moral, caso esteja em uma linguagem própria do Direito. E, por fim, revela
o poder simbólico de exercer uma violência representada pela coerção, que não atinge
a forma física do indivíduo, mas pode atingir o psicológico de acordo com suas
decisões. Embora no caso do julgado analisado seu veredito venha a diminuir
tais danos, isso não retira do Direito sua violência simbólica, já que este tem
autonomia para nomear o certo a ser seguido o que pode gerar, em outras
situações, uma perturbação emocional e deontológica, como se daria caso permacesse
impedida a interrupção nos casos de gestação anencefálica.
Alice Maria Silva Pires, Direito Noturno, Turma XXXV