No dia 24/06/2021, por meio do canal do Youtube do Centro Acadêmico de Direito da Unesp de Franca, CADir, foi transmitido o debate “Perspectivas sobre a revisão da lei de cotas em 2022”, em decorrência do encerramento da “IX Jornada de Direito”. O presente trabalho irá relacionar e analisar alguns pontos levantados nesse evento com conceitos abordados nas aulas de Introdução à Sociologia.
O ano de 2012 imprime na história do Brasil um momento marcante para uma parcela da população há muito tempo desassistida de direitos e garantias fundamentais.
Após intensos debates, mobilizações e polarizações relacionadas ao tema, negros, pardos, indígenas e pessoas com deficiência deram um passo importante rumo a uma inserção mais efetiva na sociedade ao verem sancionada a tão almejada Lei de Cotas nas instituições federais de ensino superior, a Lei 12.711/2012.
Até então, era notória a disparidade entre o número de matriculados brancos das classes média e alta e a população que viria a ser contemplada pela referida lei. Em cursos com altíssima concorrência, como medicina, direito e engenharia, por exemplo, a porcentagem de pretos e pardos ocupando essas vagas não chegava a 10%. O abismo entre essas realidades tornava-se ainda mais aviltante na medida em que se levava em conta alguns dados do IBGE. Segundo o instituto, em 2012 mais da metade da nossa população era formada por pessoas pretas e pardas ( 7,4% eram pretas e 45,3% eram pardas, totalizando quase 53% do total ). Essa representação da maioria, portanto, não se refletia na ocupação de vagas no ensino superior público.
Embora seja um tema espinhoso, a questão das cotas não é exclusividade do nosso país. Pioneira nessa área e com uma população fortemente marcada por uma rígida divisão de castas, a Índia implantou seu sistema de cotas ainda nos idos dos anos 30 do século passado. O intuito era proporcionar maior representatividade nos cargos públicos por parte de indivíduos pertencentes às castas consideradas inferiores. Posteriormente o sistema estendeu-se também ao preenchimento de vagas em escolas públicas. A experiência indiana influenciou diversos países: Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Malásia, EUA, Canadá, Colômbia, etc.
O Brasil teve suas primeiras experiências por volta dos anos 2000, tendo como projeto piloto a UERJ ( no RJ ) e logo depois a UNB ( em Brasília ). A Lei de Cotas de 2012 é, portanto, um desdobramento dessa experiência inicial. Há, contudo, um ponto muito relevante a ser considerado: o racismo em nosso país, muito embora não institucionalizado em leis, resguarda um caráter estrutural, quase como uma base edificadora da nação. Nem o advento da Lei Áurea, de 1888, “formalizador” do fim da escravidão, foi capaz de extirpar o preconceito racial alojado no DNA pré-embrionário da República que nasceria no ano seguinte. Esse preconceito sorrateiro, falsamente silencioso, por vezes ardilosamente velado, pode até não ser o único causador desse tratamento desigual entre brancos e negros, porém explica muito sobre a atual realidade enfrentada por essa população.
É justamente neste ponto que a Lei de Cotas de 2012 se justifica de maneira mais cristalina: corrigir essa enorme distorção entre a presença de brancos e negros no ensino superior público. Passados quase 10 anos da implantação da lei, mesmo ainda sendo um grupo proporcionalmente inferior, o índice de pretos e pardos nos bancos escolares vem subindo gradativamente. De acordo com o INEP, no acumulado de 2011 a 2016 houve um incremento de 39% no número de pretos, pardos e indígenas. Em 2019, pesquisa do IBGE intitulada “Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil” apontou que aproximadamente 50% das vagas nas Universidades Públicas estavam preenchidas por cotistas. Um outro dado muito interessante é que diversas instituições privadas também passaram a adotar um sistema misto de cotas raciais atreladas a bolsa de permanência estudantil. Ao que tudo indica, portanto, a Lei de Cotas vem cumprindo com o seu objetivo.
Feito essa breve análise histórica sobre a origem e necessidade da Lei de Cotas, chega-se então ao ponto central discutido na palestra oferecida pelo CADir, a revisão da Lei em 2022, abordando a questão sob a ótica de alguns conceitos estudados em sala de aula.
Francis Bacon e René Descartes, dois pensadores da era moderna, foram de extrema importância no desenvolvimento e consolidação do pensamento científico. Cada qual a sua maneira, ambos preconizavam a necessidade da ciência estar a serviço do ser humano, ou seja, a ciência moderna deveria ter como fim maior o bem estar geral da humanidade.
Bacon, empirista radical, dizia ser necessário analisar a natureza de maneira objetiva, in loco, para só posteriormente modificá-la. Valia-se do método indutivo, partindo do estudo de algo muito particular para só depois chegar a uma conclusão mais abrangente, uma lei geral. Por ser um método observacional, Francis Bacon destaca o perigo do pesquisador trazer suas ideias pré-concebidas para o campo de estudos, o que muito provavelmente deturparia o resultado final da análise. Contra esse fato, desenvolve a noção dos Ídolos da Mente, espécie de fontes de erro do intelecto que favoreceriam os pré-conceitos e pré-julgamentos, prejudicando o verdadeiro entendimento acerca do mundo.
Descartes, racionalista, valia-se do método dedutivo. Neste caso, parte-se de algo abrangente para a menor partícula possível. Quanto maior for a possibilidade de decompor o objeto de estudo em partes cada vez menores, melhor será a compreensão dessas unidades pormenorizadas e individualizadas. A dedução tem início com a Lei Geral e desembocaria no caso particular. O método dedutivo seria o oposto do método indutivo. René Descartes preconiza o princípio da dúvida: todo conhecimento deve ser questionado e colocado sob o jugo do método científico racional. Ele não nega a força dos sentidos e a experiência na busca da verdade, contudo o uso da razão pura, se possível em linguagem matemática, seria o primordial para o florescimento da verdade.
A revisão da Lei de Cotas de 2012, prevista para ocorrer no ano que vem, é um tema que gera muito debate na sociedade brasileira. Diversos pontos interessantes favoráveis e contrários a sua manutenção, ou não, poderiam ser discutidos. Infelizmente a atual polarização político-ideológica contamina a real compreensão do tema.
Valendo-se do conceito dos Ídolos da Mente, de Francis Bacon, nota-se como é difícil “limpar” o pensamento dos velhos chavões e do senso comum. Despir-se dos inumeráveis preconceitos enraizados em cada um de nós tornou-se algo praticamente impensável, posto que o comportamento dominante atualmente preconiza a radicalização, o extremismo e a replicação cada vez mais intensa de informações distorcidas e ou pré-concebidas. Vivemos tempos sombrios. A contemporaneidade líquida e imediatista é terra fértil para que os Ídolos da Caverna ( aqueles inerentes ao indivíduo, ao seu passado e a sua formação ) e os Ídolos do Teatro ( relacionados a grupos ideológicos, de interesses escusos, dogmáticos ) se alimentem e se proliferem.
Por outro lado, com o intuito de analisar a questão das cotas pelo prisma estrutural, é possível adotar o racionalismo de René Descartes quando partimos da lei geral ( as cotas devem ou não continuar? ) e passamos a afunilar a temática, decompondo a questão central no maior número possível de novos questionamentos. Seria por meio da análise pormenorizada desses novos questionamentos que emergiria a resposta para a questão central. Por mais que muitos critiquem o mecanicismo inerente ao Racionalismo, decompor o problema em unidades menores possibilita um olhar mais apurado e uma intervenção mais pontual. É como se passássemos a visualizar não apenas a ponta do iceberg, mas também toda a estrutura que permanece submersa.
É justamente quando analisamos mais demoradamente e fracionamos a problemática da questão racial no Brasil que chegamos ao cerne do entendimento. É o ponto crítico estrutural. É preciso uma reflexão diária, é preciso um distanciamento dos falsos ídolos para que tenhamos acesso a real compreensão frente a inúmeros questionamentos. Por que as balas perdidas só se perdem em corpos negros e pardos? Por que a maior parte dos trabalhos insalubres e com baixa remuneração é ocupada por negros e pardos? Por que a maior parte da população de rua é formada por negros e pardos? Por que a maior parte dos moradores das favelas é de negros e pardos? Por que os postos de gerência de grandes multinacionais ou os postos de grandes conglomerados públicos quase nunca estão sob o comando de funcionários negros ou pardos? Por que a rotineira violência na abordagem policial contra negros e pardos? Por que não houve nenhum tipo de amparo para a população negra quando da abolição? Talvez porque a abolição não tenha ainda se concretizado de fato!!
Por mais que eu seja um árduo defensor da meritocracia, é impossível não levar em conta as brutais incongruências reinantes no país. Meritocracia é um conceito relativamente justo, desde que implantado em uma sociedade que proporcione a todos os seus integrantes oportunidades iguais no acesso à educação de qualidade, saúde, moradia, segurança, mercado de trabalho, lazer, cultura, etc. Definitivamente não é essa a realidade brasileira. Enquanto não virarmos ao avesso essa estrutura perversa, enquanto não dinamitarmos as engrenagens doentias que reproduzem desigualdade, segregam e marginalizam parte da nossa população, a Lei de Cotas seguirá sendo um contra peso necessário e de fundamental importância. Ela vem possibilitando que negros e pardos galguem espaços outrora inacessíveis aos seus pais e avós. Aos poucos, com a força da lei e principalmente através da luta, da mobilização, da batalha diária e incessante por direitos fundamentais, negros e pardos deixam de ser coadjuvantes e passam a ser protagonistas de suas próprias vidas. Passam a conduzir, e não mais a ser conduzidos.
Dito isso, creio que a Lei de Cotas de 2012 está sendo um instrumento muito eficaz e deveria, sim, continuar existindo!!!!
Andre’ Michielli ( 1° ano - Direito/Noturno )