Era uma vez, nas profundezas do oceano, um sistema de leis um tanto
quanto cego, surdo e, bom... afiado. Todo o regime da Justiça Cardumista estava
nas barbatanas do Tubarão-Mor, o juiz supremo. Ninguém se atrevia a olhar
diretamente para seus olhos, na verdade, ninguém se atrevia a nadar muito perto
dele, todos sabiam do seu histórico. A realidade era dura, Tubarão-Mor seguia
estritamente as leis, era o único que decidia o que era certo e errado- e, na
maioria das vezes, não havia muito espaço para discussão-. Para cima e para baixo,
carregava em suas costas a Legislação Marítima, permitindo que nenhum membro da
população destruísse a harmonia e o reino dos peixes. Se visse qualquer nado
estranho, Tubarão-Mor já olhava meio feio, abria o livro enorme na frente do
infrator e dava seu veredito, sem discussão, sem questionamento, “É apenas a
lei, caro, é o que diz estritamente no Artigo 111: As águas profundas serão
acessadas de acordo com a experiência de nado, bem como o histórico familiar”,
disse o juiz. Tudo era muito rígido, sério e injusto, mas muitos não
questionavam, pois tinham medo de sofrer consequências mais severas do que um
chamado ou uma multa.
Contudo, ainda havia os destemidos. Tino sempre foi um tubarão especial,
curioso e inquieto. Durante as aulas, levantava a barbatana a cada 10 minutos
só para expor o seu ponto de vista, era conhecido por nunca se contentar apenas
com o que era dito e proclamado. Ao crescer, percebia que os peixes, principalmente
os de cardumes menores, viviam com medo, e não sabia ao certo o motivo. Quando perguntava
a algum deles, apenas falavam: “Não podemos baixar a guarda, nossa atenção
precisa ser redobrada. Nessa vida, podemos ser presos apenas pelo nosso
tamanho, pela nossa classe”. Tino não entendia essa frase quando era criança,
mas compreendia agora que era mais velho.
O jantar
estava pronto quando chegou em casa. Ao sentar, observou que novamente aquele
livro pesado estava sob a mesa. Tino revirou os olhos, olhou para frente e viu
seu pai ao mesmo tempo comendo e lendo, então disse; “Pai, de novo com esse
livro? ”, então o Tubarão-Mor revidou: “Mas é claro, preciso saber cada artigo
na ponta da língua, a Justiça precisa de mim. Logo será você, filho. Estará em
meu lugar, fazendo o meu serviço, daí verá como o trabalho é árduo”. O filho
pensou consigo mesmo que não era o seu sonho seguir os passos do pai, pois não
queria ser alguém que apenas dita as leis sem conhecer fielmente o contexto do povo.
Esse não era o seu destino.
Quinze anos depois, Tino estava se preparando para o serviço. Colocou a gravata, o seu livro pesado nas costas e caminhou em direção ao seu local de trabalho. Durante o caminho, os peixes o olhavam com certa admiração, até recebia sorrisos de cardumes desconhecidos. Ao chegar em seu destino, sentou em sua mesa, abriu o livro e indicou a página aos seus alunos. A partir disso, orquestrou a sua aula: “Queridos alunos, vocês entendem a complexidade desse tema? Pelas Barbatanas, sem esses fundamentos, não há condições de vocês julgarem um peixinho só. Nada adianta decorar as centenas de artigos sem verdadeiramente olhar para a realidade. Essa é a função das ciências sociais, preparar os futuros juristas para que sejam muito mais que técnicos. Como experiência própria, meu pai era um grande profissional, mas lhe faltava compreender as diferentes faces de todos os cardumes. Vocês, como futuros juízes e advogados, necessitam olhar além da própria nadadeira dorsal, sejam mais que idealistas nessa vida."
Isabella de Souza Rodrigues Castanho, 1° ano Direito Noturno.