Sou as marcas de uma relação de progresso,
Sou o empecilho das interações que contesto,
Sou um retrato pintado ad unguem.
Vivendo à margem da desordem,
Reconheço as nuances do retrocesso,
Mas faço juras saudosas aos protestos,
Que me formam à medida que me destroem.
Sou signatário da ordem, mas não vivo dela.
Sou resultado do progresso, apesar de ser abandonado por este.
E padeço à sequência de dívidas que me cobram.
E sigo questionando se essas dívidas desferem sequelas,
Pois qual preço se paga por presumir o que nunca conheceste?
Qual certeza resta por tentar apagar aquilo que retomam?
- Do Positivo sobre a Realidade.
———————————————————————————————
A corrente de pensamento positivista, instituída e perpetuada entre os séculos XIX e XX, tendo como fundador o pensador Auguste Comte, coaduna a primazia dos saberes ditos científicos em detrimento do conhecimento oriundo de fontes alternativas, tais como os cernes teológico e metafísico (este, por sua vez, sendo definido por Comte como um estado de transição). Engendrando acepções como “Física Social”, o estudioso ratifica a sistematização e atribuição de uma lógica objetiva aos estudos atrelados ao âmbito das Ciências Sociais, uma vez que, segundo proposições comtianas, os fenômenos sociais devem ser analisados sob a óptica de leis imutáveis. A imutabilidade, neste caso, é suscitada como atributo imprescindível à legitimação e revalidação de um determinado conhecimento, o qual passaria, diante do estabelecimento da ordem, a receber o desígnio de “científico”. Apartando noções vinculadas à ideia do que seria o conhecimento verdadeiramente seguro e confiável, no qual podemos nos embasar a fim de otimizar estudos contribuintes ao progresso da ciência, a variabilidade ostensiva de relações sociais não é uma surpresa, muito menos uma indagação. Pelo contrário: a pluralidade das interações notadas socialmente não só é factual, como também é crucial ao desenvolvimento de novos saberes. Álvaro Vargas Llosa, autor da obra literária “Liberty for Latin America”, avultou a maneira como o olhar de fascínio consumado em torno do Positivismo acarretou uma vicissitude inexorável, outrossim a escalada de relatos históricos orientados, desafortunadamente, por opressão e miséria. Os casos não são escassos: a política elitista de Porfirio Díaz no México e a Ditadura Militar no Brasil com o Sorbonne Humberto de Alencar Castello Branco são exemplos notórios de como a corrente de pensamento registrada intitulou episódios particularizados pelo abuso de poder e repressão de mobilizações populares.
Doravante, é insustentável atestar que vivemos em um momento de progresso. Para se discorrer acerca de tal concepção, faz-se indeclinável enfatizar as indagações que sondam o tão almejado progresso: este é natural em consonância com a suposta “evolução” da sociedade? A ordem é uma condição ou uma consequência deste substantivo? Em caso hipotético de estabelecimento intrépido de sucessivas relações de progresso, é seguro estagnar uma perspectiva aliada às ideias de ciclo ou de fluxo? Afinal, apesar de todas as questões levantadas precedentemente, é certo que há diferenças entre pensar em ciclagem e pensar em fluidez. A primeira evoca o discernimento da sequência orgânica de experiências, enquanto a segunda é entendida por um teor menos fatalista e mais consequencialista. Nesse sentido, é cabível apresentar um exemplo didático que ilustra tal distinção: as relações entre matéria e energia. Não se pode conceituar um desses elementos sem pressupor a existência e relevância do outro, todavia, à medida em que falamos de ciclagem de matéria, discorremos sobre o fluxo de energia. No primeiro caso, é pouco provável a percepção de esgotamento, sendo destacada, por sua vez, o entendimento da renovação. O segundo caso contrapõe-se: há uma convicção de dissipação, não de conservação. Corroborar os princípios ideológicos do Positivismo é corroborar a lógica do ciclo. No entanto, esta lógica, quando aplicada aos dias hodiernos, nos quais o ódio configura-se como partícula da normalidade, é perigosa e, de certo modo, mortal.
Evgeni Zamiatin, consagrado autor russo, introduz em sua magnífica obra distópica “Nós” uma perspectiva contrária aos preceitos idealizados por Comte, tendo em vista que o escritor suscita a ordem como inibidora do progresso, colocando em contestação até mesmo a frase que estampa a bandeira do Brasil. Se a ordem revela seu antagonismo em relação à mudança, então não se pode estipular este posicionamento como crucial ao progresso. Almejar neutralidade no âmbito científico, em especial no campo de estudo das Ciências Sociais, é alavancar os dados atrozes que são emitidos a respeito do genocídio na Faixa de Gaza, é ocultar as conquistas encabeçadas pelas minorias sociais (apesar de estas representarem a maior parcela da população global), desde o movimento negro até as reivindicações feministas e LGBTQIAP+, é se conformar com o cenário de violência, degradação, desrespeito, desumanização e perseguição ao qual a sociedade vigente sucumbe.
Nessa circunspecção, desmistificar a ideia do ciclo aplicado à humanidade é substancial, pois grandes mudanças não são provindas da passividade, isto é, não se pode cogitar a averiguação da ordem quando esta é inviável. Como poderíamos falar sobre uma suposta ordem condicionada pela imparcialidade em um mundo em que cada indivíduo sai em defesa de seus próprios interesses, independentemente do quão prejudiciais essas predileções são aos outros sujeitos? Como poderíamos ser neutros no planeta que experienciou o holocausto judeu, o genocídio ucraniano, o massacre em Ruanda, o terror no Timor-Leste, as guerras mundiais, dentre outras atrocidades que configuram atentados à humanidade? Ao discorrermos sobre o progresso, esperemos que este seja resultado daquilo que há de mais subjetivo em toda a humanidade: a sensibilidade, pois esta orienta ações embasadas na empatia, atributo escasso contemporaneamente. Se a indiferença engendra o mundo ordenado, que mergulhemos na desordem da compaixão e da alteridade.
Enya Souza dos Santos - 1º ano de Direito (Matutino)