Sara Araújo esquematiza seus estudos em uma linha abissal entre o Norte e o Sul em uma análise epistemológica, em que o Norte representa a hegemonia enquanto o Sul encontra-se voltado a discussões mais abrangentes, como sexualidade e gênero, até mesmo questões étnico-raciais. A partir disso, é construída uma crítica em relação a razão metonímica, em que se confere a monocultura em diferentes sentidos. “Monocultura jurídica despreza os direitos locais e os universos jurídicos que regem formas de produtividade não capitalistas e classifica como irrelevantes, locais, improdutivas, inferiores e primitivas as formulações jurídicas não modernas”.
Preta Ferreira, cantora e militante do Movimento Sem Terra do Centro, foi presa em 2019 por ser ativista política em razão de indivíduos em vivência de rua em grandes centros urbanos, principalmente na grande São Paulo. Podemos considerar Preta como o Sul e as autoridades que a levaram até a sua prisão como o Norte. “O Sul foi duplamente silenciado: porque alegadamente não tinha nada para dizer e porque não tinha linguagem para o fazer”. a fim de não ser silenciada duplamente após sua primeira silenciação, Preta redige um livro em forma de diário em que relata seus dias vividos enquanto privada de liberdade e a forma como quem fala (e luta) sobre essas questões étinico-racias é censurado.
Em muitos de seus relatos Preta expõe que o tratamento dado a ela e as demais detentas do presídio feminino pelos funcionários só se torna minimamente humano após a ativista receber visitas de senadores e políticos importantes e conhecidos na capital e no estado. Esse relato pode ser usado como comprovação do discurso de Sara Araújo em relação à linguagem, “(...) a questão da linguagem é crucial quando falamos de uma ecologia de direitos e de justiças, porque, ainda que estejamos disponíveis para reconhecer outras realidades jurídicas, tem sido difícil pensar outro meio de estabelecer pontes, sem que os termos em que se desenvolve o debate sejam definidos pelo direito moderno”.
Tendo a mulher preta, sem teto e ativista como o Sul, silenciada, e os políticos, ricos e conhecidos, que a visitam como Norte, é quase impossível não diferenciar o respeito atribuído a eles, a linha abissal que os separa entre quem é merecedor de respeito e direito e quem não está explícita diante a esse cenário. E assim o sul segue, infelizmente, sendo não apenas duplamente, como infinitamente silenciado.
Referências:
Ferreira, Preta. Minha carne: diário de uma prisão. Boitempo - SP, 2020.
Nenhum comentário:
Postar um comentário