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sexta-feira, 6 de março de 2015

Direito e autonomia

 Bourdieu propõe uma análise do campo jurídico por meio de do que é denominado uma ciência rigorosa do Direito, na qual busca o afastamento da ideia deste nas bases do instrumentalismo (Direito como utensílio das demandas da classe dominante) e do formalismo (Direito como força autônoma em relação a dinâmica social). O direito seria possuidor de uma autonomia relativa, sendo ilusão considerar que este haja independentemente das foças externas. Pois considerando-se que exista diversos campos (sociais, políticos, religiosos e outros), e que cada um deste distintivamente busque lutar por seu "poder simbólico" hegemonia do capital de seu campo, reafirmando seu status, o que se refletirá no corpus jurídico que expressa o estado das relações das forças externas ao Direito.
  A tríade na análise sociologia de Bourdieu seriam o capital, o campo e o habitus, sendo o capital representante do empoderamento de certa classe dominante podendo ser social, cultural e simbólico. E o habitus a causa da distinção entre os homens, suas disposições incorporadas por estruturas mentais, corporais, familiares e outras. Sendo este importante na análise comportamental daqueles que atuam nos cargos jurídicos.
   Trazendo Bourdieu para uma perspectiva prática, no caso da ADPF 54 do Distrito Federal, que trata da questão do aborto de feto anencefálico, caso este que muita mais que abranger a questão do aborto como um ato de homicídio, envolve questões sociais profundas, como a relação dos direitos fundamentais da mulher, a relação Estado laico e preceitos religiosos, o que seria considerado como início de vida e o que se consideraria seu fim. Em debate se põe dois argumentos principais o capital do campo científico, de maneira que considerando o feto inviável, e se dando como morte o falecimento cerebral, o feto não possuindo desenvolvimento completo não seria dado como aborto, e o capital cultural o ethos do campo religioso, mais ligado a moral, e questões de preservação de espírito, de grande influência ao considerar que tal embate ocorre em um país de fundação católica.
   O conflito demonstra a importância da relativa autonomia do poder judiciário, movido pela dinâmica social que influi no direito. Os magistrados são expostos a crescente demandas de resolução de conflitos aparecendo como gestor das mudanças sociais, o juiz com sua autonomia pode melhor distribuir o capital, adaptando o que já existe à novas possibilidades resolutivas. Sendo o veredicto o produto da "luta simbólica", ainda que a busca por este ocorra de maneira desigual, e se vincule muitas vezes mais à atitudes éticas pessoais dos agentes do campo, do que a norma pura. Neste aspecto o veredicto final do caso, da permissão do aborto de anencéfalo demonstra um novo passo na resolução da proteção dos direitos fundamentais da mulher, afastando-se da polêmica e do debate social o judiciário se permite à partir da hermenêutica tomas decisões muitas vezes progressistas, de acordo com as "novas práticas" sociais.


Barbara Oliveira de Carvalho - 1° ano, Direito diurno.
     O Direito regula as relações sociais e ao mesmo tempo que pode promover a inclusão e proteger contra abusos, é capaz também de ser repressor e limitador. Grande parte disso é devido a influência que ele sofre daqueles que são responsáveis por sua interpretação e aplicação. Dizer que o Direito como ciência deve se ater ao instrumentalismo e formalismo, não se misturando com outras ciências, principalmente aquelas que estudam as relações sociais, é um tanto quanto irreal, uma vez que o Direito deve ser feito de acordo e para a sociedade, e não essa se adaptar completamente a um Direito que não reconhece. Se as normas jurídicas vão contra os costumes, culturas e desenvolvimentos da sociedade, é bem provavel que elasse tornem ineficazes. Assim como defende Bourdieu, não há como identificar o Direito como uma ciência isolada e rígida, uma vez que a sociedade está diretamente atrelada a ele, e essa vive em constante dinamicidade. O Direito, portanto, acaba sendo obrigado a se reinventar constantemente para acompanhar todas evoluções sociais ao longos dos anos, para que possa se abranger a toda sociedade como um todo, não se limitando a determinadas classes, gêneros, ou qualquer tipo de grupo. E é nesse processo de adaptação constante, que se percebe a necessidade do Direito ser integrado pela interdisciplinaridade, não se mantendo preso e fechado a normas positivadas.
      A ADPF debatida em sala, sobre o aborto de feto anencéfalo é um exemplo do quanto o Direito precisa evoluir e se adaptar reiteradamente. O assunto em questão levanta dos mais variados debates entre aqueles que são contra o aborto em qualquer situação e se baseiam em fatores religiosos ou morais e aqueles que são a favor, que se baseiam em dados, principalemente os científicos. A partir disso também é possível observar as variadas influencias que frequentemente atuam sobre o Direito. Por mais que o Estado seja laico, a moral se confunde com as ideias defendidas na religião, essa ,que por sua vez, é capaz de influenciar fortemente no Direito e em tais conflitos. Mas a questão mais significativa é que o direito positivo protege os direitos do nascituro desde de sua concepção, como afirma o artigo 2º do Código Civil, ou até mesmo proibe formalmente o aborto, classificando-o como crime, como mostram os artigos 124 e 126 do Código Penal, porém, é válido colocar em risco a saúde, física e pisicológica, ou até mesmo a vida da mãe, por conta de uma lei que pode não ser tão efetiva numa questão como essa?
     Portanto o Direito precisa da interdisciplinaridade para poder evoluir junto com a sociedade, e assim poder se tornar mais efetivo. Ele não pode ser isolado pois está diretamente envolvido com as mais variadas ciências, de modo que elas são responsáveis por complementar sua evolução. Bourdieu, então, viu a necessidade dessa relações e as defende, pois percebe que é a partir da aproximação so o social que o Direito vai poder efetuar sua força integralmente.

A batalha no campo judiciário e os detentores de capital jurídico

            Bourdieu faz uma interpretação do campo jurídico a partir da ideia de campus: a sociedade se mantém como algo dinâmico através da ininterrupta luta simbólica entre os campus. Estes são o campo cultural, jurídico, político, etc, e que apesar de manterem certa autonomia um em relação ao outro, conseguem forjar uma dinâmica normativa e engendrar uma luta simbólica na qual buscam a consolidação da sua própria hegemonia. Da “Força do Direito”, conclui-se que o campo jurídico engendra a vida social pois é ele que estabelece as bases pelas quais essa vai operar, assim como também é feito por ela.
            Evita-se a ideia do formalismo e do instrumentalismo do direito, de forma que esse não é uma força integralmente autônoma diante das influências externas, assim como não é um instrumento a serviço da classe dominante. A racionalização do direito envolve a ideia de transformação da regularidade, que seria o que se faz regularmente, em regra, ou seja, aquilo que se deve fazer. Esse fato impõe uma falsa ideia da realidade, na qual todas as práticas consideradas “diferentes” passam a ser consideradas desviantes. Assim, o estilo de vida simbolicamente dominante é favorecido constantemente, e é dessa transformação que advém a força do direito. Este é um instrumento de transformação das relações sociais.
            Dentro do próprio campo jurídico há uma concorrência, uma luta simbólica na qual os agentes capacitados lutam para impor sua hegemonia. Os magistrados orientam o direito no sentido de uma adaptação casuística, enquanto os juristas buscam uma elaboração teórica da doutrina que enuncie o dever ser cientificamente. Bourdieu já defende a ideia da valorização do capital dentro de um campo: quanto maior o acúmulo de capital, maior o poder simbólico. Vale ressaltar que o antagonismo entre juristas e magistrados, detentores de espécies diferentes de capital jurídico, não exclui a complementaridade das suas funções.
            Assim, as batalhas entre esses detentores de diferentes capitas jurídicos se trava no campo judiciário, e é o que se verifica no caso do aborto de anencéfalos. Os juristas estabelecem algo e cabe aos magistrados a interpretação para a adaptação ao caso concreto. A interpretação do corpo doutrinário opera a historicização das normas, ou seja, adapta as fontes às circunstâncias novas. No momento que o judiciário autoriza a interrupção da gestação de fetos anencéfalos está exercendo seu poder simbólico. Este seu veredicto é produto da luta simbólica travada e adquire assim eficácia simbólica.
            Entretanto, vale ressaltar que esse veredicto, por mais que represente uma certa autonomia do judiciário, ainda se insere no “espaço dos possíveis”. As obras jurídicas estabelecem esse espaço e assim delimitam a ação de interpretação dos magistrados, de modo que esses só podem agir dentro de certos limites. É por isso que se diz que o judiciário possui uma autonomia relativa, pois apesar desses veredictos representarem “criações”, devem se enquadrar no âmbito de determinadas estruturas para que sejam aceitas na sociedade e assim proliferem.

Bordieu, Kelsen e anencéfalos

Bourdieu defende a ideia de que a autonomia do Direito se manifesta quando a este é permitido que decida sobre a aceitação ou não daquele fato no campo jurídico. Assim se percebeu o que o autor chama de "Força do Direito" ao estabelecer que o aborto de anencéfalos deveria ser aceito pela comunidade jurídica. Neste momento, se posiciona, ainda que tenha considerado a opinião de vários setores da sociedade, de acordo com a sua compreensão sobre o assunto. Tal consideração pode ser percebida na livre manifestação das ideias da CNBB, mas também de órgãos ligados à ciência.
No entanto, pode não parecer ser acurado se relacionar a tal primazia do Direito como sendo uma "autonomia". Ao pensar no significado de tal termo, a ideia que primeiro ocorre às mentes parece ser aquela relacionada à imagem de uma pessoa ou instituição livre de influências exteriores que possam intervir em seu livre arbítrio, mesmo em dicionários esta ideia se encontra presente. Porém, Bordieu ressalta que esta autonomia do Direito se estabelece em um contexto que permite a influência de diversos segmentos da sociedade, diversas ciências, mas defende que a tomada de decisão reside na "força do Direito".
Neste sentido, nota-se a crítica que se faz a Kelsen, na medida em que este entendia o Direito como sendo uma ciência que agiria independentemente das outras ciências. Para Bordieu, o poder autônomo não faz com que o Direito esteja isento da influência das outras ciências, crenças e ideologias.
Outro ponto de importante ênfase se relaciona à previsão do autor à tendência dinâmica do Direito. Não se entende que por ter a prerrogativa de decidir sobre aspectos polêmicos que afetam a sociedade, agregando ideias não somente do campo jurídico, criaria-se um "pacote" estático de preceitos jurídicos. Aceita-se, na teoria de Bordieu, a influência da sociedade e dos seus costumes na construção do Direito.

Ana Luiza Pastorelli e Pacífico - 1º Ano - Direito Diurno

Poder e regulação pelo poder: a capacidade do Direito de transformar razões particulares em prerrogativas universais

A ciência pode dizer o que é uma borboleta. Pode, porque necessita. Necessita definir para classificar, e abarcará todas as criaturas que atendam a um "mínimo" fisiológico característico como borboletas. O poder da ciência baseia-se na sua efetividade: a ciência funciona. Da mesma maneira, a religião pode delimitar qual conduta é aceitável. Pode, igualmente porque precisa. A religião é de natureza dogmática, e a religião cristã é de um dogmatismo universal: precisa regular o mundo a sua volta. Ambos os exemplos, são de atores sociais com imenso poder. Todavia, ao definirem o início da vida, ambos esbarram em um ponto claro: suas definições são discricionárias, autoritárias, são porque são. É nesse sentido que entra o Direito. O direito é muito representado pela Deusa Thêmis e sua balança. O direito reserva a si a imagem da justiça - o justo se impõe, como se o mero subir e descer dos pratos imaginários fosse o silogismo perfeito com o sentido do corpo normativo - a justiça. Mas não há direito sem a espada. A espada é o elemento do poder. O sopesamento do direito é conciliador, mas a espada é o próprio poder - o poder social do Direito. Se a ciência não pode nos dizer quando a vida começa de maneira inquestionável, e se a religião está sempre limitada ao seu rebanho, o Direito tem o poder definitivo de definir condutas e estabelecer sanções absolutamente devastadoras àqueles que andam fora da sua normação.
É então que entramos na perspectiva de Bourdieu. Ao tentar entender o Direito fora do Direito, ou seja, fora do seu "instrumentalismo" e do seu "formalismo", Bourdieu busca entender a mecânica desse campo social. É a forma de despir-se da balança e da espada - não tenho que operar meu raciocínio pelos elementos do Direito, posso pensá-lo dentro de uma racionalidade outra, para entendê-lo como objeto, não como instrumento.
A lógica de Bourdieu tem um grande mérito: embora Bourdieu entenda os estreitos laços que unem o Direito e os grupos sociais hegemônicos, ele critica a visão marxista do Direito como mero instrumento reprodutor dos valores dominantes. A questão é mais complexa, uma vez que o Direito opera no seu próprio campo, com sua própria linguagem e sua própria racionalidade. Além disso, o Direito é permeável - ele se atualiza para abarcar os valores novos que surgem da dialética social externa a ele, embora esse dinamismo seja restrito. Esse dinamismo restrito é fruto das possibilidades espaciais do direito, que joga dentro de uma lógica engessada, um espaço possível cada vez mais contornado pelas decisões anteriores. Essa auto regulação é a garantia da perpetuação do Direito como campo próprio, diferenciado.
O grande demérito de Bourdieu, todavia, é entender o Direito apenas na perspectiva Kelseniana, ignorando outras concepções do mesmo. 
Mas assumindo que o Direito é ainda muito kelseniano, partamos para a relação entre essas ideias de Bordieu e a questão do aborto de fetos anencéfalos. Como podemos entender a decisão do STF fora do "instrumentalismo" e do "formalismo" do Direito?
É possível que o fenômeno da judicialização dos temas sociais mais prementes seja o mais forte exemplo de que o Direito está mudando para abraçar uma nova lógica social, muito mais ampla, pluralista, onde emergem atores sociais com relevância e não adeptos à moral conservadora, própria de uma classe dominante?
É provável que sim, Mas a questão que sempre fica é o porque da busca desses atores sociais pelo Direito, e não pela política. Voltamos então ao começo do texto. O poder do Direito pode transformar uma perspectiva particular numa razão universal, e nesse sentido influenciar e normatizar o mundo à sua volta. Dar forma jurídica a uma reivindicação social tem sido, portanto, a forma que os grupos sociais tem encontrado para fazer valer sua perspectiva de mundo.

Victor Abdala - 1o ano - Direito Noturno

Direito, mudanças paradigmáticas e o “espaço do possível”
 
A sociedade pós-moderna tem provocado reflexões e mudanças de paradigmas no campo político, econômico, cultural, chegando ao âmbito jurídico. Este último passa a receber uma série de demandas, às quais precisa encontrar respostas. Assim, o direito que por muito tempo foi visto como mantenedor do status quo, toma um novo viés, contudo, faz-se mister questionar a maneira como essa transmutação acontece e qual a sua profundidade.
            O caso do aborto de anencéfalos vem a calhar para a compreensão desse fenômeno, aliado ao pensamento de Bourdieu. A discussão do juldado é feita sob uma ótica fria e quase estéril. Não é debatido em que ponto a vida inicia-se, são deixadas fora do eixo do debate à condição da mulher e seu direito ao próprio corpo, esta, em verdade, é confinada no habitus do campus social de “mãe”. O aborto não é discutido em si, opta-se por outra terminologia para referir-se ao ato, “interrupção antecipada da gravidez”, justificando a mudança por tratar-se de um feto sem vida em potencial.
            Entretanto, tais temáticas, se fossem abordadas de forma direta, causariam grande desconforto, uma vez que se encontram diametralmente opostas a concepções da ordem social pré-estabelecida. Materializa-se, assim, frente ao observador o “espaço do possível”, conceito criado por Bourdieu, entendido como o alcance da ação de “distender a forma”, na qual há que se agir conforme as regras internas. Nesse sentido, os ministros tiveram que mover sua argumentação conforme a lógica interna, para conseguir um parecer favorável ao aborto de fetos anencefálicos. Dessa forma, a mudança dá-se por vias laterais, devido à delimitação desses “espaços do possível”.
            Destarte, o direito toma uma posição dual, ao mesmo tempo em que faz parte da mudança, faz da conservação. Porém a transformação é inegável e esta não foi fruto de geração espontânea. Ao contrário, vê-se primeiro uma mudança no habitus (disposições incorporadas), que no caso do julgado, já não era mais o do dogmatismo religioso, mas o da racionalização, sendo função dos agentes trazer os diferentes habitus para incorporá-los no campo (palco das lutas simbólicas). Assim, possibilita-se, dentro dos limites do “espaço possível”, que transformações e mudanças paradigmáticas ocorram, ainda que com pouca profundidade, mas ensejando perspectivas mais otimistas.
 
Letícia Raquel de Lava Granjeia – 1º Ano – Direito Noturno