Segundo Bourdieu, não há que se falar em autonomia absoluta do Direito. Tensões
sociais oriundas de outros campos influenciariam o campo jurídico, o qual, por sua vez,
reverberaria naqueles, em um complexo sistema de retroalimentação permanente. Essa
concepção nos é útil para analisar a aplicação de alguns institutos jurídicos tal como vem
sendo feita nos últimos anos no Brasil, sobretudo no âmbito das ações que visam a
responsabilização de agentes públicos.
Para além daquela grande operação de ampla repercussão na mídia, iniciada em 2014 e
que até hoje gera discussões, chama atenção também a autorização, por parte de uma
desembargadora do Tribunal Justiça do Rio de Janeiro, da prisão preventiva do prefeito da
capital do referido estado, no final do ano de 2020. A decisão foi polêmica, gerando
discussões e críticas dentro da comunidade jurídica, inclusive por parte daqueles que não
possuem nenhuma simpatia política ou ideológica pelo prefeito alvo da cautelar em questão.
Muitos opinaram pela abusividade da medida, alegando que, ainda que houvessem indícios de
ilícito, as justificativas apresentadas pela magistrada não seriam suficientes (não se
evidenciou probabilidade de fuga, de destruição de provas, entre outras) para autorizar esse
tipo de prisão.
A (in)validade jurídica dessa medida não cabe a este texto. Porém, é valido analisar
quais fatores por vezes impelem alguns magistrados – e os demais agentes do campo – a
decidirem de forma a empurrar as fronteiras do “espaço dos possíveis”. O histórico
patrimonialista da administração brasileira e a ampla repercussão midiática de grandes
esquemas de corrupção tornam as operações e ações judiciais contra agentes públicos um
investimento de capital simbólico altamente rentável. Isso fomenta os embates internos dos
atores desse campo, que disputam entre si – ou entre subgrupos – espaço para exercerem
poder simbólico suficiente para fazer valer sua respectiva visão, ou seja, para dizer o direito.
O interessante de ser notar é que, para Bourdieu, não seria possível descrever tal
fenômeno apenas sob a perspectiva do campo jurídico. Primeiro porque os agentes deste
trazem para sua atuação, ainda que de forma inconsciente, o habitus assimilado nos outros
demais campos. A racionalização dessa atuação por meio dos processos linguísticos próprios
do campo jurídico não é suficiente para afastar essa influência. Além disso, o capital
simbólico acumulado em tais casos não se origina exclusivamente no campo jurídico, nem se
destina a exercer poder somente neste. A projeção de alguns agentes desse campo nos demais
(como o político e o cultural) ilustra bem esse fenômeno.
Portanto, o método do sociólogo francês permite constatar que essa luta pelo poder
dentro do campo jurídico, simbolizada como o poder de dizer o direito, não é alheia às tensões
sociais que permeiam os demais campos. Sobre o caso em tela, a despeito da conversão da
medida em prisão domiciliar pelo STJ, o STF, de ofício, no ano seguinte, derruba a prisão. A
declaração de Gilmar Mendes toca nessa aplicação ampliada – e deturpada, na opinião de
muitos, inclusive na do ministro – da prisão cautelar como sendo resultado da influência de
elementos sociais extrajurídicos. Segundo o ministro, “o que tem-se verificado,
principalmente no âmbito dos crimes contra a Administração Pública, é uma recorrente
afirmação de vetores axiológicos etéreos e abstratos como o clamor social e a impunidade
generalizada como critérios aptos a lastrear a prisão cautelar”. Ora, esses vetores axiológicos
aos quais o ministro se refere, talvez não tão etéreos e abstratos assim para os campos
extrajurídicos, poderiam servir, para Bourdieu, de boas evidências da autonomia meramente
relativa do campo jurídico.
PEDRO ZANUTTO – DIREITO/NOTURNO