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quarta-feira, 23 de novembro de 2022

A permissão para o preconceito disfarçada de lei e a necessidade da ADI 6987

 A questão acerca do racismo no Brasil é algo latente, que a despeito do que boa parte da população brasileira acredita, ainda traz gravosas consequências à população negra do país, um exemplo recente que ganhou a mídia brasileira foi o caso do humorista Eddy Jr., o qual foi brutalmente ofendido, e até mesmo ameaçado, por caminhar com seu cachorro no pátio do prédio em que residia. A violência sofrida pelo humorista denota o caráter de desumanização, ao qual a população negra é submetida, em diversos momentos, ele é tratado, por xingamentos, como animal e selvagem, mostrando justamente que pessoas preconceituosas não enxergam os negros como igualmente humanos. Apesar de tal caso ter tido uma grande relevância, o fato não se mostra como algo isolado e esporádico no país, cotidianamente, pessoas negras sofrem com ofensas verbais e violência física, por serem negras. Sendo assim, em um território tão cruel e discriminatório, se faz necessário que o direito atue, se não para reparar esses danos, ao menos para punir práticas que ferem expressamente o disposto na Constituição Federal de 1988.  

Tendo em vista a violência sofrida pela população negra, e como a legislação a vem tratado até o presente momento, o partido Cidadania, impetrou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 6987, a fim de que o Supremo Tribunal Federal, julgue a improcedência de haver uma diferenciação no que se denomina de injúria racial e racismo,  que muitas vezes as defesas dos agressores enquadram as ofensas no crime de injúria racial, o qual possui uma penalização mais branda que o crime de racismo, pois está sujeita a prescrição e a fiança, diferentemente do racismo que é tido como imprescritível e inafiançável. O pedido do partido está pautado em dispositivos constitucionais de combate à discriminação e principalmente no disposto pelo artigo 5°, inciso XLII. Atualmente, a forma como a legislação brasileira está moldada fornece aos agressores uma proteção baseada no artigo 140, parágrafo 3° do Código Penal, em que há uma definição de injúria racial, tal norma tem como fundamento único proteger essa parte da população que ainda subjuga os negros e os submete a violência física e simbólica. 

É, justamente, nessa esteira, que o partido provoca a corte constitucional brasileira, já que uma norma infraconstitucional, sem fundamento adequado para diferenciar injúria racial de racismo, está em vigor e ensejando efeitos diversos daqueles previstos pela própria Constituição. O pedido é pautado em um evidente caráter de racionalização do direito, o qual é percebido através da atribuição de mesma punição ao mesmo crime, pois ofender um indivíduo por conta de elementos raciais, é justamente o que se determina como racismo, mas que o Código classifica por injúria racial, tal contradição elucida a falta de racionalidade presente na norma, por isso, o pedido para que a corte reveja a constitucionalidade do referido dispositivo legal, é coerente e necessário, tendo em vista que o direito se propõe a possuir esse caráter racional. 

 Além da demanda por uma maior racionalização, há também uma necessidade historicização da norma, em um país que por tanto tempo possuiu uma base escravagista. Base que fica clara ao lembrar-se que o último país da América a abolir a escravidão foi o Brasil, o qual mesmo após a abolição, não ofereceu nenhuma oportunidade de real inclusão na sociedade para os recém libertos, pelo contrário, realizou políticas voltadas para o branqueamento da população a partir do incentivo à entrada de imigrantes europeus, ocasionando uma marginalização completa dos negros que ficaram sujeitos à própria sorte em um sistema que negava sua existência. Com isso, é notório, que o Brasil é constituído por um habitus racista, que pratica o alterocídio com pessoas negras, negando a eles o caráter humano, estigmatizando seus corpos e prendendo-os a esse estereótipo criado desde o colonialismo de que são ameaçadores e precisariam ser controlados. Nesse contexto opressor, é necessário que a legislação acerca das pessoas negras seja revista para evitar que práticas discriminatórias sejam perpetuadas, tendo em vista, principalmente, o caráter reacionário presente na política e na sociedade brasileira, desse modo, a historicização da norma se faz imprescindível a fim de evitar que preconceitos continuem sendo cometidos e pior, continuem possuindo um amparo legal disfarçado de punição, que é o ensejado pela lei de injúria racial. 

Ademais, a demanda por uma legislação coerente chega à suprema corte por meio de uma forte organização do movimento negro, que mobiliza, diuturnamente, o campo social, para que tenham suas demandas, ao menos ouvidas pelo restante da população ou por outros campos, como o político e o jurídico. Violências eram passadas desapercebidas, e até mesmo ignoradas antes do fortalecimento dos movimentos negros, esses que diante muita luta conseguiram judicializar algumas pautas ou levá-las ao legislativo. Caso a decisão do Supremo seja por equiparar injúria racial a racismo, isso será uma conquista do movimento, uma vez que esse foi, e é o protagonista das lutas pela efetivação de direitos, o campo jurídico figura como um mero integrante, que somente reage após a provocação social, além disso, a decisão possibilita que a nível estratégico a luta dos movimentos possa ganhar uma maior força, tendo em vista que, pessoas preconceituosas não poderão mais passar impunes a agressões racistas, e a nível constitutivo haveria um impacto social, por meio da mensagem que o racismo não será mais tolerado, fazendo com que indivíduos preconceituosos repensem atitudes, antes mesmo de comete-las, já que a decisão implicaria em uma punição real àqueles que realizam discriminação tendo por base elementos raciais. 

 Outro ponto fundamental a ser abordado é o notável caráter de magistratura do sujeito, pois, há uma falência nas instituições representativas, já que a população negra, ainda se encontra sub-representada no Congresso Nacional, portanto, tem muitas suas pautas ignoradas o que por vezes as torna irrealizáveis no âmbito legislativo, sendo assim, recorrem ao Judiciário para que algo infactível na política, passe a integrar o espaço dos possíveis e apresente-se como uma hipótese viável. Mesmo o campo jurídico reproduzindo diversas vezes a monocultura do saber europeia, e efetivando essa divisão norte e sul realizada pela “linha abissal”, como classifica Sara Araújo, uma decisão por equiparar condutas análogas- injúria racial e racismo- possibilitaria uma presença mais segura dos negros em ambientes que são historicamente hostis a suas presenças, como o meio político, o que permitiria uma ampliação dessa ecologia através da propagação de diferentes saberes, e até mesmo um combate expresso a essa efabulação de que o negro é primitivo, selvagem e não estaria apto a ocupar tais lugares de relevância. 

Em suma, é fundamental que a questão de equiparação da injúria racial ao racismo, prevista na ADI 6987, seja debatida no Supremo Tribunal Federal, pois, ao levar tão importante assunto ao plenário, movimentos negros serão finalmente ouvidos a despeito de toda negligência e omissão legislativa, com a sentença da corte haverá uma possibilidade de que o crime de racismo esteja consagrado no espaço dos possíveis e punições para quem o comete sejam finalmente aplicadas de maneira incisiva. Uma decisão favorável à inconstitucionalidade da lei de injúria racial, representará um combate a essas pessoas que insistem em diminuir e estigmatizar a população negra, consequentemente, uma afronta às práticas de alterocídio negro. Através do estabelecimento real do crime de racismo o Brasil estará um passo mais perto de uma democracia, de fato, representativa, a qual, em consonância com valores constitucionais de combate ao preconceito, permite que todos possam ser cidadãos e tenham seus direitos efetivados.  

Marina Cassaro 

Alterocídio e Necropolítica na ADI nº. 6.987

 O crime de injúria racial pertence atualmente à espécie do gênero racismo, conforme a decisão pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, por oito votos a um, tendo vencido o ministro Nunes Marques. Conforme o relator, Edson Fachin, há uma equiparação, tendo em vista o artigo 5º XLII, da Constituição, da injúria racial (artigo 140, parágrafo 3º do Código Penal) ao crimes de racismo (previsto pela Lei 7.716/1989), de modo que não há extinção da punibilidade a acusados por injúria racial. 

Entretanto, conforme entendimento de Nunes Marques, as condutas dos crimes são diferentes e a imprescritiblidade da injúria racial só pode ser implementada pelo Poder Legislativo. Contudo, como demonstrou em contraposição Alexandre de Moraes, o bojetivo fundamental da República Federativa do Brasil é "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (artigo 3º, IV, da Constituição) além de pautar as relações internacioanis pelo "repúdio ao terrorismo e ao racismo" (artigo 4º, VIII, da Constituição.) A partir dessa interpretação, há uma suposta possibilidade de efetivação plena do combate ao racismo no Brasil, em razão de essa pauta, inclusive, estar dentro do habitus e do espaço dos possíveis, como assinala Boudieu, da sociedade nacional. Ademia, verifica-se que, tendo o direito uma autonomia relativa, como afirmou outrora Kelsen, este pode ser alterado mediante as mudanças sociais e políticas, como aconteceu no caso em questão, e não é possível taxá-la pejorativamente de uma judicialização ou um ativismo social inócuo, tendo em vista os conceitos de Garapon, mas sim uma verdadeira mobilização do direito, como queria Mccann. 

Não obstante, a questão do racismo, apesar de participante do espaço dos possíveis como alertado acima, não se restringe ao âmbito legislativo e judiciário, mas sim a um âmbito cultural e social, como demonstra Achille Mbembe. Conforme o filósofo camaronês, o alterocídio é a demarcação do outro como um dessemelhante radical, dentro de um intramundo das políticas da morte, por meio, como é o no caso em questão, de uma designação de injúria e, por consequência, da neutralidade e do extermínio. Nesse sentido, o pensador conclui que há uma verdadeira necropolítica, uma política de morte, que taxa os diferentes, principalmente raciais, como praticamente zumbis. Ainda, em sua obra Crítica da Razão Negra, o autor apresenta o conceito de razão negra, desginado como "imagens do saber; um modelo de exploração e depredação; um paradigma da submissão e das modalidades da sua superação, e, por fim, um complexo psiconírico" (MBEMBE, 2014). 

Assim, o filósofo promove a reflexão acerca da visão sobre o negro no mundo atual, que é carregada não somente de uma conceituação pejorativa, como também de uma taxatividade atrelada aos termos "escravizado" e "raça". Logo, conclui Mbembe que, no imaginário eurocêntrico que se espalhou para o resto do país, o negro é visto como "uma série de experiência históricas desladores, a realidade de uma vida vazia (...) (MBEMBE, 2014). 

Apesar da decisão em questão, como assinalou Alexandre de Moraes, abrir o espaço para um efetivo combate ao racismo, este não se delimita somente a esse âmbito, como já foi dito, de modo que ele deve ser combatido em todos os setores da sociedade para, de uma vez por todas, não mais imperar uma necropolítica que incentive o alterocídio. 

Cauan Eduardo Elias Schettini - Turma XXXIX - Direito matutino - RA: 221222863