Um dos casos mais emblemáticos de conflito entre interesse financeiro de um lado e interesse popular de outro, que acaba se inserindo em um embate jurídico ainda maior, é o da reintegração de posse (também conhecida como Desocupação do Pinheirinho) acontecida na comunidade de Pinheirinho em São José dos Campos no ano de 2012. A comunidade que contava com mais de cinco mil moradores e apresentava um auto grau de complexidade, se localizava em um grande terreno abandonado pertencente a uma empresa chamada Selecta SA. O processo da reintegração foi extremamente controverso desde o seu início, tendo seu futuro incerto dada as decisões conflitantes de diferentes cortes ou magistrados. Entretanto, após sete anos de conflito judicial, Naji Nahas, proprietário da Selecta SA, com decisão favorável do STJ prevaleceu e as famílias ali residentes foram expulsas com uma enorme brutalidade por parte da Polícia Militar, o que gerou repercussão e revolta até mesmo internacional.
Esta reintegração de posse certamente se insere em um contexto neoliberal que fortemente influencia o sistema jurídico desde os anos 80. Nele a manutenção da propriedade privada prevalece em relação ao direito à moradia. Isto não é revoltante apenas de uma perspectiva humana mas também viola a Constituição Federal de 1988, a exige que a propriedade privada assuma uma função social. O terreno no qual o Pinheirinho se encontrava, por estar abandonado desde os anos 90, não cumpria função social alguma sequer, estando "largado às traças", a espera de um futuro investimento incerto.
Indo além de uma análise puramente jurídica deste caso, é importante também fazer uma abordagem sociológica. Dada a ampla margem que este caso abre, poderiam ser utilizadas várias perspectivas. No entanto, a adotada será a da Sara Araújo, professora da universidade de Coimbra e cuja tese de doutorado foi sobre o pluralismo jurídico e epistemologias do Sul. Segundo ela, para começar é importante notar nesta análise que o norte e o sul transcendem noções puramente geográficas, não sendo a linha do Equador o divisor de água entre os dois. As diferenças são de ordem cultural, histórica e econômica.
Normalmente se considera como pertencentes ao Norte a América anglo-saxã, a Europa Ocidental e o Extremo Leste Asiático. Os países destas regiões, devido a vários motivos como a ascensão política da burguesia, se industrializaram fortemente no século 19. Isto permitiu dois importantes elementos: o primeiro deles é décadas posteriormente serem países "ricos" e desenvolvidos (permanecer agrário como o Brasil é chave para o fracasso) e o segundo foi possibilitar as condições materiais para subjugar outros povos (que por não serem industrializados ficavam para trás tecnologicamente) e assim exercer uma política imperialista. A cultura destes povos subjugados, era considerada como inferior e até mesmo selvagem pelos colonizadores, que impunham sua própria cultura forçadamente sobre os povos nativos sem considerações pelas nuances locais. É importante notar que esta subjugação muitas vezes não era física, podendo também acontecer economicamente (como é o caso do Brasil em relação aos ingleses no século dezenove).
O conjunto de valores locais, desta forma, eram desconsiderados e descredibilizados. Em seu lugar eram propagados os valores europeus, os quais na época era indissociáveis do capitalismo e liberalismo. Esses valores impregnaram as instituições locais e boa parte das esferas da vida pública, principalmente os tribunais. Após o processo de descolonização na segunda metade do séculos vinte (um século e meio antes nas Américas), esses valores europeus e agora também norte-americanos de individualismo, valorização do mercado em detrimento do coletivo e não-assistencialismo permaneceram. Rompeu-se as estruturas explícitas de dominação, mas a mentalidade do dominador permaneceu. Mentalidade esta que é intrinsecamente opressora e divisiva. Exemplos não faltam de países africanos e asiáticos cujos líderes vem com desdém a cultura local e olham para a do Norte como superior e mais desejável. Isso faz com que assim ignorem formas alternativas de organização social e cultural e permaneçam presos a problemas criados pela própria imposição do Norte.
Falado sobre o restante do mundo, é importante retomar ao Brasil, que não deixa de ser vítima deste fenômeno. O judiciário brasileiro é fortemente influenciado pelo Norte e a ideologia tecnicista liberal. Admitindo pouca ou nenhuma influência de fontes essencialmente nativas ou de alternativas como o direito marxista (Brasil poderia aprender muita coisa com Pachukanis). Assim desta forma, a reintegração de posse de Pinheirinho é um grande (e lamentável) exemplo do modus operandi do nosso judiciário, que funciona em função de proteger os interesses dos empresários e do grande capital em detrimento dos marginalizados da sociedade. Uma realidade sem dúvidas revoltante e que demonstra ser uma difícil, mas possível, herança do norte a ser superada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário