João Francisco dos Santos, popularmente conhecido como Madame Satã, fora uma figura simbólica da Lapa carioca ambientada na década de 1920. O transformista, a travesti, o malandro, o pai, o amante dos homens, negro, era ainda um corpo vítima das mais incisivas discriminações sociais – estas assíduas em nossa estrutura social de raízes heteronormativas e racistas. Apesar de ter sua narrativa subordinada à luta constante por sua existência, Satã designava-se por forte resistência a um sistema que insistia em subtraí-la, ela não cabia na limitada imposição de sobreviver, queria o que era seu como pessoa humana: amar quem lhe fosse conveniente, vestir-se como mandava sua imagem do espelho, reverberar arte e lutar pelos seus sem ser importunado por sua essência.
Há quase 100 anos, Madame Satã já se movimentava contra os poderes simbólicos do Estado e seus ecos dentro da sociedade, protegendo aqueles e aquelas que com ela caminhavam e, ainda, impondo-se como um corpo de existência e resistência mediante aqueles que insistiam em negar-lhe a vida. A história de João Francisco dos Santos é também a história do Brasil, narrativas de marginalização e repulsa contra a comunidade LGBTQI+ que acabaram por edificar um país que mais mata transexuais e travestis.
A linguagem sempre fora um instrumento de grande importância dentro do contexto de ação coletiva dos movimentos sociais, trata-se de um elemento que cria pontes de identificação e representatividade para com cada corpo de luta, construindo uma esfera de proteção e fortificação dentro dos próprios coletivos. É importante, por exemplo, que a comunidade LGBTQI+ crie nexos maciços entre cada um dos indivíduos-componentes, e, ainda, que saiba articular na língua daqueles que possam institucionalizar a materialização de seus direitos, como visto na requisição da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 26, esta que declara displicência do Congresso Nacional por ter arquivado um projeto de lei que criminalizaria atos de trans e homofobia.
O Poder Legislativo do país mostra-se, de maneira geral, refratário ao asseguramento material do direito à vida – bem como outras garantias suprimidas – da comunidade LGTBQI+, lacuna omissiva que, somada à luta das minorias e buscas por concretização de um Estado Democrático de Direito, instigam ações de emissão de pareceres pelo STF (Supremo Tribunal Federal), este guardião da Constituição e que captou o não cumprimento de cláusulas pétreas da Constituição Federal de 1988, como a dignidade da pessoa humana.
Isoladas pelo processo de gentrificação, constantemente subordinadas às políticas de “higienização”, patologizadas e com seus direitos de exercer identidade de gênero limitados, pessoas homoafetivas veem-se rodeadas por barreiras supressoras de sua dignidade. Muitas foram as Madames Satãs que combateram por sua existência e a de seus semelhantes, e hoje, orgulham-se pelas manifestações de arte com Liniker, Linn da Quebrada e Bahias e a Cozinha Mineira, ou ainda, aplaudem – onde quer que estejam – a força de Érica Malunguinho, e de todos aqueles e aquelas que de alguma, ou qualquer forma ,expressaram-se dentro e para além de nossa espaço de diversidade.
A ADO 26 demonstra a continuação de uma luta que não está nem perto do fim, mas que contribui para o fôlego das movimentações sociais, dado que se configura como uma demonstração que o Direito é permeável à mobilização. A criminalização da homo e transfobia fortalece a não abdicação da existência e resistência da comunidade LGBTQI+ no Brasil, limitando crimes de ódio e nos reconhecendo como um país estruturalmente marginalizante.
Vitória Garbelline Teloli - 1º ano Direito (noturno)