“(...)
inesperado quadro esperava o viandante que subia, depois desta
travessia em que supõe pisar escombros de terremotos, as ondulações
mais próximas de Canudos.” (CUNHA, 1984: p. 12)
Embora
resguarde em si teor dramático referente ao episódio da invasão do
Arraial de Canudos, cujo fim trágico se deu no ano de 1897, tal
descrição caberia com relevante semelhança ao recente caso da
comunidade do Pinheirinho, na cidade de São José dos Campos, Vale
do Paraíba. Sob a lente da cronicidade, é de espanto que mais de
cem anos separem ambos os eventos; que gerações dos Direitos
Humanos marquem a transição entre o período Regencial e a atual
Democracia Social brasileira; que a noção hodierna do Direito traga
avanços no aspecto humano, enquanto as práticas de expulsão
permanecem – guardadas certas peculiaridades de ação –
igualmente rígidas, lesivas e contra qualquer princípio da
dignidade da pessoa humana, hoje cláusula pétrea da Constituição.
Cabe,
inicialmente, referência ao diálogo estabelecido entre Hegel e Marx
– respectivamente segundo a dialética idealista e materialista –,
em que o primeiro propõe ser o Direito pressuposto da liberdade, a
superação das particularidades em detrimento da liberdade geral; e
o segundo o critica em sua “idealização” de um Estado que seria
somente uma abstração, posto que não há patamar de igualdade em
que a aplicação legal caberia sem desequilíbrio ou parcialidades
numa sociedade a priori desigual e classista - a capitalista. Pinça-se, então, a
ideia de Karl Marx da luta de classes para base de conflito, já que
a ideia da ação de reintegração de posse tinha como partes
membros de posições sociais distintas – a saber, uma corporação
e um grupo de sem-teto.
O
foco da discussão ultrapassa a questão de quem tem em seus
argumentos a razão, dada a comprovada posse de terra pela empresa e
o direito constitucional à terra pelos “esbulhadores”, direitos
resguardados e hierarquicamente equivalentes, pois cabe analisar a
forma como foi conduzido o processo pela Justiça do Estado de São
Paulo – em desacordo com os preceitos legais e estatutos dos
magistrados. A parcialidade como atuaram os responsáveis pela
decisão tornou o panorama favorável aos detentores do capital,
Selecta Comércio e Indústria S/A, permitindo a retomada a posse
pela Polícia Federal no início de 2012, oito anos após o início
do confronto judicial.
É
de conhecimento que a decisão da juíza Márcia foi o início do
verdadeiro atentado às pessoas que ali viviam, cujos bens foram
violados, junto à própria dignidade individual, nas demolições
sem notificação prévia ou tempo hábil de retirada dos pertences;
nos registros de abuso sexual; nas agressões físicas ou verbais; e
nas duas mortes de moradores. Das tantas perguntas restantes, tem-se
aquela em que a paridade dos direitos – à propriedade privada e à
moradia – se choca aos direitos coletivos assegurados em
Constituição e, de ordem superior, em tratados internacionais dos
quais o Brasil é signatário. O que valeu mais no caso supracitado?
Não há dúvidas de que se cumpriu, primeiramente, o direito à
propriedade, muito embora essa escolha tenha ocasionado – como
causaria nas circunstâncias apresentadas – um prejuízo
incalculável, material ou mesmo moral, às vítimas.
Sabe-se que as normas positivadas na Constituição atual evoluíram
em relação às anteriores, sendo o obstáculo maior justamente sua
concretização. Mais do que ao Executivo e Legislativo – que já,
em teoria, provém as bases de existência do Estado Social –, cabe
ao Judiciário a compreensão de que as leis são passíveis de
compreensões variadas por justamente ser o cenário nacional
desigual, não devendo ser sua aplicação rígida e “igual”,
posto que diferenças existem entre as partes envolvidas nos
processos. Dessa maneira, fosse essa ideia acatada pelos magistrados
responsáveis pelo caso Pinheirinho, talvez a ordem de reintegração
sequer houvesse ocorrido nos termos vistos, talvez as dívidas da
empresa fossem levadas em consideração junto à improdutividade da
terra e à inversa produtividade da comunidade assentada, e o
destino das famílias que tinham um lar formado e uma identidade
firmada pudesse ter outra via – uma menos violenta e criminosa.
“Aquela
campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação
integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo.” (CUNHA, 1984: p.133)
Referência
Bibliográfica: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três,
1984 (Biblioteca do Estudante)