Aqui estamos mais uma vez. Dessa vez, discutimos um problema maior: a justiça e o Direito, mais precisamente, o acesso a moradia e propriedade no Brasil, caso posto: a reintegração de posse no Pinheirinho, 2012.
“Construímos
nossa maloca
Mas
um dia, nós nem pode se alembrá
Veio
os homis c'as ferramentas
O
dono mandô derrubá
Peguemos
todas nossas coisas
E
fumos pro meio da rua
Apreciá
a demolição
Que
tristeza que nós sentia
Cada
táuba que caía
Doía
no coração [...]”
“Eu
não tenho onde morar
É
por isso que eu moro na areia
Eu
nasci pequenininho
Como
todo mundo nasceu
Todo
mundo mora direito
Quem
mora torto sou eu
Eu
não tenho onde morar [...]”
“Quando
o oficial de justiça chegou
Lá
na favela
E,
contra seu desejo
Entregou
pra seu narciso
Um
aviso, uma ordem de despejo
—
É uma ordem superior
Ô,
ô, ô, ô, ô!, meu senhor!
É
uma ordem superior
Ô,
ô, ô, ô, ô!, meu senhor!
É
uma ordem superior
—
Não tem nada não, seu doutor
Não
tem nada não [...]”
“Por
esse pão pra comer, por esse chão prá dormir
A
certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por
me deixar respirar, por me deixar existir,
Deus
lhe pague [...]”.
Mas não é somente nas letras e canções dos tempos áureos tupiniquins que o problema da moradia é desnudado. É factível perceber que desde muito tempo, talvez desde o que o Brasil é Brasil, existe um grande problema de moradia em nosso país. Há donos de terras em toda parte.
Mas temos a impressão (ou realidade ocultada) de que
existem Naji Nahas em cada esquina, inclusive fazendo as leis. Pela história temos:
450 a.C
- Lex Duodecim Tabularum. Tabua III: Adversus hostem aeterna auctoritas esto.
Determina que contra um inimigo o direito de propriedade é válido para sempre.
Tal norma é decorrência das guerras travadas contra outros povos. Se um inimigo
tivesse o domínio de determinada terra essa ainda pertenceria a seu antigo
dono, que poderia reavê-la por meio da força. Tábua VI: De domínio et
possessione.
1600 d.C.
- Há donos de terras em toda parte. Os primeiros pedaços de terra foram
chamados de capitanias hereditárias, logo, eram capitães. Mas herdados de quem?
Não se explica. O Estado português nunca deu devidas ou maiores explicações.
1824 d.C.
- Constituição Imperial de 1824, a propriedade era tida como um direito
individual, sem qualquer atenção para o seu interesse social.
1850 d.C.
- Lei de Terras, como ficou conhecida a lei nº 601 de 18 de setembro de 1850,
foi a primeira iniciativa no sentido de organizar a propriedade privada no
Brasil. O Estado impediu negros, mulatos e outros brasileiros de ter acesso ao
pedaço de Terra. Ficou estabelecido, a
partir desta data, que só poderiam adquirir terras por compra e venda ou por
doação do Estado. Não seria mais permitido obter terras por meio de posse ou
por meio de cultivo. Vilania.
1856 d.C.
- O Estado, a partir do ano de 1856, começa a dificultar a construção de novas
moradias populares no centro da cidade, posteriormente proíbe a sua construção,
fechando-as, e em alguns casos, efetua a sua demolição.
Até aqui, o Estado e as leis só prejudicaram ou
retardaram o acesso à terra e a propriedade. Sob perspectiva hegeliana, o
Direito seria uma forma de atingir a liberdade, com características isonômicas
e garantidoras da felicidade. Não ocorreu. Prossigamos, pois.
Vejamos um exemplo de como as leis foram modificando
o Brasil no que tange a moradia:
1930 d.C
- No início do século XX, devido à rápida industrialização, as cidades atraíram
grande parte da população, porém, inexistiam políticas habitacionais que
impedissem a formação de áreas urbanas irregulares e ilegais. As áreas ocupadas
ilegalmente são expressões diretas da ausência de políticas de habitação
social. As políticas habitacionais propostas foram, em sua maioria, ineficazes
devido a diversos fatores políticos, sociais, econômicos e culturais.
1934 d.C.
- a Constituição de 1934 dispôs sobre o princípio da função social da
propriedade, princípio este que fora mantido nas Constituições de 1937 e 1946,
sendo que na última constou também o direito à propriedade dentre os direitos
individuais, além do social.
1964 d.C
- Sistema Financeiro de Habitação (SFH), instituído pela Lei 4.380/64, que
objetivava a dinamização da política de captação de recursos para financiar
habitações por meio das cadernetas de poupança e recursos do Fundo de Garantia
por Tempo de Serviço (FGTS) através do Banco Nacional de Habitação (BNH).
Entretanto, com crises econômicas, arrocho salarial e perda do poder
aquisitivo, as prestações da relação contratual muitas vezes foram corrigidas
em desacordo com o aumento salarial, o que gerou uma inadimplência acentuada. O
resultado é o que SFH beneficiou muito mais as classes com renda mais elevada
(acima de 8 salários mínimos), do que aquelas de baixa renda (abaixo de 3
salários mínimos).
1967 d.C.
- A Constituição Federal de 1967 destacou o tema da “função social da
propriedade”, mantida inclusive na Emenda Constitucional de 1969, permanecendo
o direito de propriedade sob os dois aspectos (social e individual).
1988 d. C.
- Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho,
a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção
à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição.
2001 d.C.
- Lei 10.257/2001, chamada de Estatuto da Cidade, tornando assim o direito à
moradia mais viável para os milhões de moradores da “cidade ilegal”, através de
novas políticas de regularização fundiária.
2005 d.C.
- LEI Nº 11.124, DE 16 DE JUNHO DE 2005. Dispõe sobre o Sistema Nacional de
Habitação de Interesse Social – SNHIS, cria o Fundo Nacional de Habitação de
Interesse Social – FNHIS e institui o Conselho Gestor do FNHIS.
Art. 2o Fica instituído o Sistema Nacional de
Habitação de Interesse Social – SNHIS, com o objetivo: I – viabilizar para a
população de menor renda o acesso à terra urbanizada e à habitação digna e sustentável;
2009 d.C.
- Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) foi lançado em março de 2009 pelo
Governo Federal para permitir o acesso à casa própria para famílias de baixa
renda.
Aqui já temos uma evolução mais próxima do modelo
idealístico de Direito hegeliano, algumas leis tentaram suplantar
defeituosidades e garantir a felicidade de um segmento da população.
Porém,
ainda nesses programas, em especial o MCMV, temos os resquícios da perpetuação
dominadora no país, em recente pesquisa a
socióloga Melissa Fernandes Arrigotia, da London School of Economics (LSU), diz
que o programa, apesar de boas intenções, mascara e reproduz desigualdades sociais em vez de
diminuí-las. Ela diz que, apesar de
agora possuírem um teto para morar, têm também novas dificuldades financeiras e
de mobilidade, como por exemplo a distância e o custo de transporte até o local
de trabalho. Em outro argumento, o arquiteto Héctor
Vigliecca, diz que o Minha Casa, Minha Vida acaba gerando ainda mais exclusão. O poder público constrói "depósitos de
prédios", com o objetivo de atingir metas numéricas, mas sem se preocupar
com estruturas que promovam a cidadania.
ORA, temos um
choque de realidade ao nos deparamos com as escrituras legislativas e o que
realmente acontece. Por exemplo, no caso de Pinheirinho, onde mais de 4 mil pessoas
foram retiradas de um espaço de terra em S.J. dos Campos, no ano de 2012, mesmo
com tantas palavras bonitas expressas e assinadas em acordos internacionais
pelo governo brasileiro. Temos problemas, sob a ótica marxista, pode-se inferir
que o Direito serve a alguém - que não é a classe trabalhadora- no embate entre
Naji Nahas e moradores, o Direito posicionou-se ao lado do proprietário legal, evidencias
da natureza classista do aparelho jurídico do Estado numa sociedade
capitalista. No sistema jurídico
nacional tudo se passa como se a legalidade da posse da terra se repercutisse
sobre todas as outras relações sociais, inclusive contra os direitos humanos e
outros básicos. Ou seja, sendo, pela ótica de Marx, o direito é um falseamento
da realidade ou seja, direito superestrutura do sistema capitalista, está
arraigado no pensamento burguês, sendo paliativo, mais precisamente o ópio do
povo. Ademais, o Direito não nasce espontaneamente dessas relações, mas é posto
pela vontade. O problema que se verifica é que tal vontade é somente aquela dos
que possuem o poder estatal, ou seja, a vontade da classe dominante, sendo o
Direito expresso de um lado pela lei e, de outro, como o conteúdo determinado
dessa lei.
Mas o fato é que,
de modo geral e abarcando a universalidade dos fatos, a evolução do Direito
trouxe evolução da liberdade, ao compararmos o direito romano com as liberdades
de sua época, veremos que de século em século, escravos foram ganhando alguns
direitos, mulheres também. No egípcio temos a mesma percepção, se compararmos
leis de outros séculos, com o hodierno, veremos que vivemos muito melhor e com
mais liberdade do que nossos antepassados.
Mas, insisto em
dizer que o Direito também serve como promotor do bem-estar, não podemos
vilanizar decisões judiciais, afinal, temos um ordenamento jurídico a seguir e, se quisermos atingir melhores níveis, será pelo respeito a ele, achando brechas dentro dele. Se
nós, com nosso pouco pedaço de construção, o tivesse essa parte invadida,
ocupada, metade do seu quintal utilizado por pessoas que não lhes são
familiares, qual seria a nossa reação? De querer reaver? De deixar usarem? Ou
de firmar um acordo? Difícil responder. Entretanto, em seu argumento, a juíza
deixa claro que ambos os direitos estão em pé de igualdade (propriedade e de
moradia), como de fato estão, o primeiro está no art 5°, XXII e o segundo, no
art 6°, da Constituição Federal de 1988, e ela [juíza], sendo um dos três pilares de poder no Brasil, não poderia
usurpar funções que cabem ao Executivo e Legislativo. Se dois poderes estão
estagnados, devemos nós força-lo a funcionar. E em outro ponto, acena para que
as partes, em conjunto com o governo, façam um “acordo”, ela diz: “seria mais eficiente destinar outro local
com custos menores e melhor planejamento?”. Assim como tudo na vida, o
Direito pode servir para bem ou para o mal. De certa forma, nos últimos anos, a
população tem visto muito de suas conquistas, seus direitos efetivados, serem
fruto da ação das leis e de juízes, entretanto, acostumados com a inépcia dos
outros poderes, o desespero faz com que peçamos socorro à toga, enquanto esta,
ao meu ver, não está legitimada a fazê-lo, uma vez que não foram eleitos, não
passaram pelo crivo da população e nem colocaram planos de governo ou projetos
em referendo eleitoral.
Outro ponto crucial,
reside no fato de ‘quem’ faz as leis e ‘porque’ faz ou ‘por quem’ o faz. Uma
pesquisa revelou que metade nos nossos legisladores são milionários, assim como o Naji Nahas, ou seja, será que podemos
esperar algum retorno positivo do Estado? Após recentes casos de corrupção,
desvio de dinheiro e projetos comprados, tudo desnudado pela Operação
Lava-Jato, temos a percepção de que nem mesmo aqueles que elegeram-se com
discurso popular estão mantendo suas palavras.
Na posse de terras, nem sempre querem mais terras.
Na posse do poder, há que sempre querer mais poder.
No posse do poder, todos são Naji Nahas.
(Victor Hugo Xavier, 1° Direito - Noturno)