A interpretação é, ao que
tudo indica, uma das mais elementares e intuitivas ações dos seres humanos.
Desde cedo, somos ensinados a utilizar sinais e referências para que nossos
comportamentos possam ser orientados externamente. Os exemplos de ocorrência são
inúmeros e, considerando o fato de que operadores do Direto são, também, seres
humanos, a interpretação ocorre do mesmo modo na esfera jurídica, e, apesar de
haver certas adaptações, a essência é preservada. A partir disso, emerge um
empecilho: interpretações ilimitadas podem promover muita arbitrariedade nos
julgamentos e, diante disso, deve haver certos limites. Um dos mais frequentes
é a própria letra da lei, que é tida como o meio mais seguro de aplicação do Direito,
posto que até mesmo as vírgulas utilizadas pelo respectivo legislador são mantidas
durante o processo. No entanto, a segurança não denota necessariamente algo
ideal, ao passo que, ao invés de guiar pragmaticamente toda a operação, a depender
do contexto, o texto legislativo é capaz de restringi-la, inclinando-a a uma
aplicação seletiva do Direito. Uma comprovação referencial do exposto é o
quadro das uniões estáveis que são oficial e juridicamente reconhecidas a
partir do prescrito no art. 226, §
3º, da Constituição Federal, bem como o que é abordado de forma complementar, ainda
sobre o assunto de uniões afetivas, no art. 1.723 do Código Civil de 2002.
O referido dispositivo
constitucional preconiza a ideia de que, para fins de preservação da unidade
estatal, será reconhecida a união estável entre homem e mulher. Muito embora
deixe de fazer menção a qualquer restritivo explícito que impeça qualquer outra
variação quanto às possibilidades de combinações de gêneros durante a formação
de uma união, tal artigo é capaz de estimular um polêmico debate: uniões
homoafetivas podem ou não serem reconhecidas oficialmente pelo Direito? Para
que o questionamento possa ser elucidado, cabe a análise de como distintos
espaços dos possíveis abordam o assunto em pauta para que, a partir do conflito
entre eles, possa ser elencada a solução mais adequada.
A priori, no que tange ao espaço jurídico dos possíveis, o Supremo
Tribunal Federal, durante o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade
de número 4.277, alegou que no caso do artigo constitucional referido não havia
omissão legislativa e que, portanto, a norma havia sido direta e objetiva ao
mencionar o reconhecimento de uniões entre homens e mulheres; ainda assim,
zelando pelo atendimento das demandas e dos próprios preceitos constitucionais
(tais como a não discriminação, também, no que tange aos gêneros), a Corte
optou pela extensão do direito ao reconhecimento de uniões aos casais
homoafetivos. A posteriori , o espaço
moral e político dos possíveis apresentou ao quadro legislativo um novo dilema:
o passar do tempo trazia consigo, ao lado da comprovação da existência de novos
gêneros, novas formas de união, as quais não conseguiam obter a devida
oficialização jurídica, posto que a lei havia sido teoricamente clara e, assim
como qualquer ato legislativo, não havia previsto as novas demandas sociais
posteriores a ela. Conclui-se, à luz do exposto, que alterações na realidade
converteram o referido art. 226, §
3º, em algo que não se adapta a todos os quadros, de tal modo que conflitos
entre a realidade e o previsto legalmente foram engendrados.
Tendo como base essa perspectiva,
foram levantados debates contraditórios quanto à atuação do Judiciário nos
casos em que os conflitos fossem reificados. Porém, é importante mencionar o
fato de que as demandas dos casais não incluídos na prescrição dos artigos
anteriormente mencionados (da Constituição Federal de do Código Civil) são
pleitos que existem no momento presente e, portanto, não devem aguardar por uma
provável alteração legislativa que venha a reconhecer um maior rol de
possibilidades de união. Modificações em dispositivos legislativos não são
realizadas de modo imediato ou facilitado; demandam certo tempo que não pode
ser desperdiçado por aqueles que anseiam por amar, ainda mais considerando o
fato de que nem todos (mais especificamente os defensores da interpretação
excludente do artigo 226) se beneficiariam com a alteração, podendo, inclusive,
dificultá-la.
Ademais, o espaço moral dos
possíveis não é apenas utilizado no quadro por aqueles que pleiteiam uma
expansão do Direito à união homoafetiva; ele é manejado até mesmo por aqueles
que são contrários à expansão e esse manejo ocorre a partir da racionalização
de alguns dos seus elementos para o espaço jurídico dos possíveis. Isso porque
muitos que integram o último grupo (contrário à mudança) agem a partir de
fatores morais e individuais, tal como a ideia de que desvios à cultura
heteronormativa deveriam ser inadmissíveis – algo que é avalizado pelo espaço
religioso dos possíveis. Por ser notório, nota-se que o âmbito moral e político
possui uma ampla influência no quadro, sendo racionalizado para a esfera
jurídica pelos defensores da medida e pelos contrários a ela.
No que diz respeito aos defensores, preceitos
do campo político (tais como a própria realidade) são somados a aspectos do
campo jurídico (como o direito à dignidade e à integridade) e o resultado desta
soma visa a promover dois importantes fatores: (i) universalização e (ii) neutralização
do reconhecimento à união afetiva a partir da sua inserção oficial no
ordenamento jurídico (seja por meio de uma alteração legislativa, ou pela
atuação judicial, ou por ambas as formas). O ato de converter o reconhecimento
em algo geral e oponível a todos torna-se ainda mais necessário, se analisado
sob a perspectiva da tutelarização do Direito, mais especificamente a partir da
expansão desse fenômeno para os demais indivíduos – considerando que a isonomia
é um dos princípios regentes de todo a ordem constitucional brasileira. Por
consequência, o ordenamento jurídico estaria à disposição para ser pleiteado e
recorrido por todos (heterossexuais ou não) nos casos em que isso for
indispensável.
A partir dos efeitos obtidos por
meio do reconhecimento das uniões homoafetivas, ter-se-ia o fenômeno intitulado
por Pierre Bourdieu de historicização da norma (no caso em análise, do
supracitado artigo constitucional), expressa precisamente pela retirada desta
do seu contexto original, trazendo-a para o presente e promovendo para tal
transposição as adaptações necessárias – como uma interpretação expansiva do
texto legislativo em razão das atuais demandas e limites do inaceitável. Diante
disso, infere-se que a expansão da área de incidência do artigo em pauta não
configura o fenômeno de antecipação de demandas, haja vista que, neste caso, as
forças impulsionadoras do direito de reconhecimento à união homoafetiva são
justamente pretéritas a ela, isto é, não se trata de uma presunção por parte
dos juristas em prol de expansão da dignidade humana.
O ato de reconhecer e
ratificar a união homoafetiva deve ser considerado como o que é: a devida atuação
judiciária em nome da preservação dos direitos reconhecidos
constitucionalmente. Assim como mencionado anteriormente, os avanços e as novas
demandas sociais (em especial, as relativas ao quadro das sexualidades) são
aspectos responsáveis por tornar a realidade atual distinta do contexto no qual
os artigos anteriormente mencionados entraram em vigor e, diante de uma inércia
legislativa em termos de propensão a não alteração dos dispositivos jurídicos,
devem ser observados pelos juristas, a fim de que a ausência de palavras na
lei, neste caso em específico, não provoque um sufocamento democrático.
Claramente, considerando a busca pela preservação da harmonia entre os Poderes,
não cabe apenas ao Judiciário e à sua interpretação o dever de proteção da
integridade da pessoa humana; no entanto, a atuação por parte dele pode ser o
estímulo necessário para uma retificação no próprio ordenamento por parte do
Legislativo, no que tange ao quadro das uniões afetivas. O ponto fundamental é
o seguinte: os casais homoafetivos não merecem esperar pelo legislador cordial
realizar as alterações; enquanto elas não serem feitas de fato, o jurista deve
realizar a sua defesa dos direitos constitucionais (dentre os quais estão o
direito à integridade, a não descriminação e ao reconhecimento de uniões).
Assim, não há interferências ou abusos no quadro da homeostase dos Poderes; há
apenas um cenário no qual todos realizam as suas incumbências, contribuindo,
assim, para a própria preservação democrática da sociedade.
Conclui-se, por fim, que o
direito ao reconhecimento da união homoafetiva consiste em um meio de obtenção
de diversos outros direitos. A partir dele, (i) a noção de magistratura do
sujeito (enquanto meio de proteção) por parte do Direito é expandida para além
das fronteiras da heteronormatividade, (ii) demandas atuais são contempladas,
atualizando o ordenamento e tornando-o mais propenso à inclusão por adaptação,
e (iii) ocorre a potencialização do regime democrático, tendo como base a noção
de que ele depende diretamente das diferenças como forma de legitimação.
Curioso é pensar na forma pela qual um direito reconhecido a uma parcela da
sociedade é capaz de realizar alterações tão estruturais. Demandas surgem com o
passar do tempo em um fluxo inevitável e, se prestarmos atenção, somos capazes
de ouvir certos pilares antigos da sociedade ruindo.
Mario Augusto Monteiro Filho