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quinta-feira, 13 de outubro de 2022

A judicialização por uma perspectiva minarquista

 É importante, antes de qualquer argumentação, salientar a diferença dada entre o termo “judicialização” e “ativismo judicial”, especialmente em seus objetivos nessas práticas, que possuem linhas bem tênues em seus significados.

O ativismo judicial, portanto, é uma atividade do poder Judiciário que fere completa ou parcialmente que pode ferir ora a tripartição de poderes, ora ir além do que lhe é de incubência, como podemos ver em inúmeras atuações dos mais diversos órgãos, sendo o objetivo deste variado, desde favorecer um grupo/ área ou, até mesmo, para uma mudança na perspectiva da população, tal como Bourdieu¹ aborda em seus conceitos acerca do poder simbólico e habitus, em que uma das funções da norma jurídica seria a de transformar pautas desejáveis aos olhos dos operadores da legislação ou de parte do meio social uma realidade. Logo, a judicialização é uma atitude puramente política do poder judiciário. Mas será que a judicialização também não tem esse alvo último de mudar o rumo de uma questão?

A judicialização é a atuação do judiciário em temas de grande relevância nacional, como aborto ou até mesmo, para fins de exemplificação em algo concreto, a decisão preliminar que o ministro do STF Luís Roberto Barroso promulgou no mês passado acerca do piso nacional da enfermagem, tornando-o sem efeito². 

Após essas premissas, o grande questionamento é: a judicialização vale a pena realmente?

A resposta desta pode estar no grande depende. Isto porque as circunstâncias dirão. O caso acima citado, apesar de remeter a um certo ativismo judicial, uma intromissão do que cabe ao poder legislativo em termos técnicos, foi uma decisão prudente com relação aos rumos da economia brasileira. A grande reflexão que paira está em saber qual o limite - legal ou moral ( indo contra a perspectiva apenas da letra seca da lei)- que deveria ser adotado?

Tudo é uma questão de equilíbrio. O limite poderia ser muito bem colocado até o momento em que um, de alguma maneira, assume o papel do outro, como o STF de legislar ou o Congresso de julgar, exceto nos casos que já são previstos por lei³.

Portanto, sim, a judicialização pode ser, de alguma maneira, importante, mas apenas quando se mantém dentro dos seus limites, um remédio, mal necessário que precisa existir, tal como Maus, estudiosa da ciência política, assim defende, com a Justiça não sendo paternalista, almejando interferir em qualquer caso que apareça, mas apenas entrando em casos que de fato são lhe são devidos e que realmente irão cooperar com o avanço de um ambiente estável*. 

 Conclui-se, logo, que a saída para qualquer conjuntura é a manutenção do que o mesmo ministro acima citado fala:




    “A judicialização que, de fato existe, não

decorreu de uma opção ideológica, filosófica ou

metodológica da Corte. Limitou-se ela a cumprir, de

modo estrito, o seu papel constitucional, em

conformidade com o desenho institucional vigente”**





¹ O poder simbólico. 1989. Págs 11 e 61.

² https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2022/09/04/barroso-stf-suspende-piso-salarial-enfermagem.htm      

³ Tal como a sabatina de candidato à ministro do STF pelo Senado Federal, Art 52, inciso II, CF/88  

* O judiciário como superego. 1999.

** Barroso. 2012. Pág 5-6.                                           


Aos autores e autoras do blog. Aos leitores e leitoras do blog.

Não esperava que a essa altura do século XXI tivesse que travar batalhas já travadas por homens e mulheres desde a Idade Média.

PEÇO SINCERAS DESCULPAS pelo texto de teor homofóbico que constou do blog do dia 06/10 até às 19h40 de  segunda-feira, 10/10. Imerso em inúmeros afazeres acadêmicos, não tenho como controlar em tempo real o conteúdo das postagens. Ainda que tenha tomado conhecimento do texto no início da tarde do dia 10/10, esses mesmos afazeres me impediram de ler com atenção e tomar a decisão de excluí-lo. Não poderia responder a uma opinião intolerante com uma reação imponderada.

O blog, assim como o professor que o coordena, respeita a liberdade religiosa e a liberdade de expressão, mas não compactua com a visão de que essas possam servir para a desumanização, para a inferiorização, para a estigmatização de alguém. Democracia não é isso. A religião não pode servir de justificativa para a negação do existir do outro ou atribuição de qualidade ilegítima a essa existência.

É possível se religar ao plano não-terreno sem negar a humanidade do outro. Aliás, em qualquer religião o amor fraternal é condição para estar em comunhão com a natureza superior que, para aqueles que creem, governa o mundo. Assim, negar a legitimidade de qualquer existência é negar o princípio mesmo de toda religião.

O caso será encaminhado para a Comissão Local de Direitos Humanos. Por isso, rogo à XXXIX Turma de Direito da UNESP que o julgamento do caso esteja ao encargo institucional. Em tempos trevosos, conclamar as instituições a agir é a melhor maneira de evidenciar sua imprescindibilidade.

Prof. Dr. Agnaldo de Sousa Barbosa –
Professor Associado/DECSPP

As ideias de Pierre Bourdieu e Antoine Garapon aplicadas ao reconhecimento da união homoafetiva

 

Consideradas as diversas colocações feitas em outra oportunidade sobre as ideias do sociólogo Pierre Bourdieu e sua teoria do espaço dos possíveis em relação ao julgamento da ADPF 54 pelo Supremo Tribuanal Federal, podemos observar elementos que se repetem no caso do julgamento da ADI 4.277, sobre a impossibilidade, até o momento de sua propositura, das uniões estáveis homoafetivas se converterem em casamento, o qual era, de todas as formas, inacessível à população homossexual.

De maneira similar ao que ocorreu na discusssão do aborto de feto anencéfalo, o próprio fato da questão da união homoafetiva ser judicializada nos permite uma visão mais otimista do espaço dos possíveis. Porém, ao mesmo tempo, observa-se que, apesar da ação cada vez mais intensa do Judiciário no sentido de conceder direitos, o debate público é pouco receptivo, quiçá cada vez menos receptivo, a essas pautas.

Dessa forma, existe aí uma grande ambivalência, que parece se repetir em tantos dos casos de decisões do STF, na posição dos direitos da comunidade LBTQIA+ no espaço dos possíveis: ao passo que a decisão da Corte Suprema constituiu um necessário – e retardado sobremaneira, diga-se de passagem – avanço no campo dos direitos dessa população, ela nos revelou um espaço ainda muito fechado a quaisquer questões concernentes à comunidade.

Na questão do reconhecimento da união homoafetiva como instituto jurídico pelo STF, no entanto, além da sensibilidade que uma parcela da população apresenta ao direito em si, existe a polêmica em torno dos meio pelo qual ele veio a ser positivado. Nesse sentido, o principal argumento é o de que o meio legítimo para o reconhecimento dessa união é a emenda à Constituição tal qual esta a previu, e não uma nova interpretação de seu texto pelos magistrados da suprema corte – fenômeno, aliás, que parte da doutrina denomina mutação constitucional.

Encontramos uma brilhante resposta a esse argumento na obra do jurista francês Antoine Garapon  "O juiz e a democracia", de 1996, em que é abordada uma situação na França da década 1990 notadamente similar ao que se verifica no Brasil de 2022: ao juiz não é reconhecida a plena dignidade democrática, nas palavras do autor. Com efeito, observamos com frequência críticas fevorosas à atuação de nosso Judiciário, sobretudo do Supremo Tribunal Federal, apoiadas principalmente em sua natureza supostamente antidemocrática: ele delibera sobre questões que interessam ao debate público de forma independente do posicionamento que predomina neste. Além, naturalmente, do fato de que esses magistrados são indicados pelo Presidente da República, que é representante eleito da população, é necessário lembrar que aquilo que se entende por democracia, bem como todas as estruturas que a compõem, estão tão sujeitos à mudança quanto quaisquer outros elementos da vida humana. A lei deve acompanhar essas mudanças, e não ficar estagnada no tempo, sendo entendida sempre da mesma forma, através de gerações e gerações, sob o risco de gerar incompatibilidades entre a norma e o contexto em que existe a norma por vezes tão grotescas que beirem o ridículo. Aqui, cabe lembrar a lição do ministro Luís Roberto barroso: “O Direito não existe abstratamente, fora da realidade sobre a qual incide. Pelo contrário, em uma relação intensa e recíproca, em uma fricção que produz calor mas nem sempre luz, o Direito influencia a realidade e sofre a influência desta.” (BARROSO, Luís Roberto. Mutação constitucional. Revista Jurídican In Verbis.)

Garapon elabora brilhantemente essa ideia revelando o novo paradigma de democracia que vinha se estruturando em diversos países à épca da concepção do livro e que continua a estruturar-se: uma democracia em que a justiça possui maior poder, em que o sujeito se volta para ela em uma tentativa de lidar com o seu "desabamento interior". A respeito dessa nova estrutura democrática, leciona o jurista: "A vontade geral não pode mais pretender ter o monopólio da produção de direito, mas deve tornar-se compatível com os princípios contidos nos textos básicos (...) O direito não está mais, portanto, à disposição da vontade popular."

De fato, Garapon argumenta que não nos encontramos mais naquela situação em que o juiz deve ser apenas a "boca da lei", nas palavras de Montesquieu: a lei, antes, não se confunde com o direito, embora seja um componente de suma importância – o juiz deve agora recorrer a fontes externas a ela para decidir. "Enquanto que, na concepção clássica, o juiz é sujeito à lei e só exerce seu direito de julgar através dela, ele tende, no presente, a elevar-se acima da lei para tornar-se o porta-voz do direito."

É também digna de nota a confluência entre essas ideias de Garapon sobre o papel do juiz – mais rigorosamente, os juizes, na sua multiplicidade que ele faz questão de destacar – e a visão de Bourdieu do campo jurídico como duplamente determinado: por um lado pelas pressões externas e, por outro, pela sua própria lógica interna, em que as obras jurídicas delimitam o tempo todo o espaço dos possíveis.

A abundância tanto de críticas quanto de elogios à atuação do Supremo Tribunal Federal em questões como a ADI 4.277 remete muito claramente à "luta simbólica permanente na qual se defrontam definições diferentes do trabalho jurídico enquanto interpretação autorizada dos textos canônicos" de que fala Bourdieu em “O Poder Simbólico”. O sociólogo também nos lembra que, em cada subespaço, dominantes e dominados estão em uma luta constante que assume diferentes formas, e nem por isso são antagônicos entre si. Nessa rejeição da perspectiva marxista da relação entre dominantes e dominados, que para Bourdieu cria um mundo social unidimensional, quando este é na realidade um espaço multidimensional, é possíver ver um outro paralelo com Garapon, que observa, com notável sabedoria, que nós "Só podemos sair desta oposição dramatúrgica entre a soberania popular e os juízes, de que fala Jacques Lenoble, se concluirmos que a transformação do papel do juiz corresponde à transformação da própria democracia."

De fato, a atuação do Judiciário em causas como a união homoafetiva não se trata de uma instância usurpar poderes de outra, mas da própria ressignificação da democracia e da soberania popular. A luta pelo direito de dizer o direito, nas palavras de Bourdieu e em concordância com Garapon, é condição própria e inexorável da sociedade democrática. Podemos constatar, felizmente e graças às tantas lutas sociais travadas nos últimos tempos, que em nossa democracia se admite cada vez menos o viés de marginalização das minorias e se adota, em seu lugar, o entendimento – como fez inclusive o STF no julgamento da ADI em questão – de que é direito de todos a busca da felicidade, direito que não poderá ser restrito por uma visão formalista do Direito que impeça a atuação de fato legítima do Judiciário em questões como esta, em que está em jogo a concessão de direitos essenciais à dignidade da pessoa humana.

Helena de Battisti Almeida

 

DA ADI 4.277 COMO RESPOSTA A HOMOFOBIA

O julgado em questão, trata da união homoafetiva no Brasil, verificada como constitucional pelo STF em 2011. Atrelado à ADPF 132, arguiu que ao não reconhecer a união homoafetiva como união estável, violaria os direitos fundamentais de liberdade, segurança jurídica, dignidade da pessoa humana e isonomia.

A partir daí, pode-se analisar, alinhado à ideia de Pierre Bourdieu, a luta simbólica para a imposição da definição do mundo social conforme seus interesses. Apesar de a decisão ter sido unânime, vê-se a briga do “dizer o direito”, uma vez que a união homoafetiva era conflitante com a moral social predominantemente aceita na época em que a Constituição fora redigida. A ideia retrógrada, intolerante a homoafetividade, é substituída pelo respeito a diversidade e a autodeterminação.

Uma vez unânime a decisão, faz-se nítida a percepção do “espaço dos possíveis” para os ministros que atuaram na ADI 4.277. Apesar disso, mais uma vez atuando como Amicus Curiae, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) foi a primeira entidade que se pronunciou contrária sobre a matéria analisada, alegando que a “pluralidade tem limites” e que a Constituição não possui lacunas.

Outro ponto de válida análise, é o “ativismo judicial” presente no caso. A ADI foi proposta pela Procuradoria Geral da República e não pelo grupo social que viria a se beneficiar com a mesma, o que expõe a iniciativa do magistrado de protagonizar a discussão da demanda.

Por fim, e agora guiado por Antoine Garapon, uma vez que: “o intérprete final da Constituição é o Supremo Tribunal Federal”, conclui-se que o direito à união homoafetiva dificilmente seria efetivado de outra maneira. Ainda, pode-se entender que a situação representa um aprofundamento na democracia, ao permitir a união estável entre duas pessoas, sem condições de orientação sexual.

PEDRO XAVIER PEREIRA – DIREITO  2°SEMESTRE MATUTINO

221226079

 


ADI 4.277 e a luta pela igualdade material à comunidade LGBTQIA+

 

A Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277 garantiu a legalidade da união estável homoafetiva em detrimento da condição jurídica anterior, que não assegurava integralmente a igualdade à comunidade LGBT perante o restante da sociedade, majoritariamente heterossexual. Diante tal contexto, se iniciou um embate entre diferentes setores sociais no campo jurídico, onde divergentes visões seriam expostas e sob a luz do direito, haveria uma visão superada e outra vencedora.

A argumentação acerca da reprovação da união estável homoafetiva pela ala conservadora da sociedade se provou obsoleta sob a luz da igualdade material e formal. Um dos principais elementos utilizados advém do art. 226 §3º , que afirma a composição heterossexual da entidade familiar. Todavia, a hermenêutica jurídica possibilita a interpretação de tal artigo em sentido compatível com a contemporaneidade, atestando aos dois gêneros a possibilidade de formação familiar legal, não a composição heterossexual, seguindo a proposição de historicização da norma de Bourdieu, principalmente ao analisarmos o art. 5º da Constituição Federal, que promove a igualdade perante a lei genericamente. Dessa forma, se tornou possível a formação da união estável a todos os brasileiros, não apenas aos heterossexuais.

Sob a perspectiva social, a defesa conservadora pautada em princípios religiosos se prova drasticamente divergente dos princípios do estado democrático de direito e laico. Ao reconhecermos o estado brasileiro como laico, o ordenamento jurídico não deve levar em conta costumes religiosos de setores da sociedade, mesmo que majoritários. Sendo assim, a crença religiosa pautada em obras como a Bíblia jamais poderá ofertar força normativa maior que aConstituição Federal, que afirma a liberdade de expressão e a igualdade para todos.

Tal embate possibilita a compreensão do espaço dos possíveis, denominado por Bourdieu. Nesse caso, os setores reacionários da sociedade buscaram no campo jurídico, através de relativa brecha no texto normativo e de preceitos relacionados à religião e tradição, impor a visão conservadora, extremamente presente na contemporaneidade. Entretanto, o setor progressista, pautado em valores de igualdade e humanistas, superaram a tese reacionária.


Além disso, Garapon explicita a importância da presença de ideias multilaterais no campo jurídico. Segundo o próprio, “Se a análise sociológica foca unilateralmente o Poder Judiciário, perde-se de vista processos mais profundos e mais densos de mudança política e social”. Dessa forma, a justiça deve atuar de forma que acompanhe o período histórico e com o intuito de apaziguar as inúmeras tentativas de transgressões entre grupos sociais destoantes, procurando amenizar os diferentes sofrimentos humanos.

O autor também sugere a presença de laços hierárquicos artificiais no estado democrático, na qual o poder outrora dominado por relações de completa dominação como a estabelecida pelo poder patriarcal e colonizador são substituídas pelo controle dos magistrados e maior posse de direito concedida aos homens em geral. Logo, sob a perspectiva da ADI, é possível depreender a importância da superação de valores reacionários em prol da concessão de igualdade formal e material às minorias sociais por parte dos juízes e indivíduos.

Não se trata de ativismo judicial, mas da materialização da igualdade entre todos, expressamente afirmada pela norma fundamental. Dessa forma, caso a inconstitucionalidade da união estávelhomoafetiva fosse acolhida pela Suprema Corte, estaríamos sob grave ameaça dentro do corpo institucional à democracia, porém, as ameaças ao modelo democrático são constantes apenas no campo social, onde diariamente casais homossexuais são reprimidos de forma física e moral.

Vinicius Mota Corrêa de Souza - Matutino

 

Reconhecimento da união homoafetiva: o direito viabilizador de outros direitos. Uma análise holística da Ação Direta de Inconstitucionalidade de número 4.277 à luz da contemplação dos clamores do presente, dos espaços dos possíveis e da magistratura do sujeito

 

A interpretação é, ao que tudo indica, uma das mais elementares e intuitivas ações dos seres humanos. Desde cedo, somos ensinados a utilizar sinais e referências para que nossos comportamentos possam ser orientados externamente. Os exemplos de ocorrência são inúmeros e, considerando o fato de que operadores do Direto são, também, seres humanos, a interpretação ocorre do mesmo modo na esfera jurídica, e, apesar de haver certas adaptações, a essência é preservada. A partir disso, emerge um empecilho: interpretações ilimitadas podem promover muita arbitrariedade nos julgamentos e, diante disso, deve haver certos limites. Um dos mais frequentes é a própria letra da lei, que é tida como o meio mais seguro de aplicação do Direito, posto que até mesmo as vírgulas utilizadas pelo respectivo legislador são mantidas durante o processo. No entanto, a segurança não denota necessariamente algo ideal, ao passo que, ao invés de guiar pragmaticamente toda a operação, a depender do contexto, o texto legislativo é capaz de restringi-la, inclinando-a a uma aplicação seletiva do Direito. Uma comprovação referencial do exposto é o quadro das uniões estáveis que são oficial e juridicamente reconhecidas a partir do prescrito no art. 226, § 3º, da Constituição Federal, bem como o que é abordado de forma complementar, ainda sobre o assunto de uniões afetivas, no art. 1.723 do Código Civil de 2002.

O referido dispositivo constitucional preconiza a ideia de que, para fins de preservação da unidade estatal, será reconhecida a união estável entre homem e mulher. Muito embora deixe de fazer menção a qualquer restritivo explícito que impeça qualquer outra variação quanto às possibilidades de combinações de gêneros durante a formação de uma união, tal artigo é capaz de estimular um polêmico debate: uniões homoafetivas podem ou não serem reconhecidas oficialmente pelo Direito? Para que o questionamento possa ser elucidado, cabe a análise de como distintos espaços dos possíveis abordam o assunto em pauta para que, a partir do conflito entre eles, possa ser elencada a solução mais adequada.

A priori, no que tange ao espaço jurídico dos possíveis, o Supremo Tribunal Federal, durante o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade de número 4.277, alegou que no caso do artigo constitucional referido não havia omissão legislativa e que, portanto, a norma havia sido direta e objetiva ao mencionar o reconhecimento de uniões entre homens e mulheres; ainda assim, zelando pelo atendimento das demandas e dos próprios preceitos constitucionais (tais como a não discriminação, também, no que tange aos gêneros), a Corte optou pela extensão do direito ao reconhecimento de uniões aos casais homoafetivos. A posteriori , o espaço moral e político dos possíveis apresentou ao quadro legislativo um novo dilema: o passar do tempo trazia consigo, ao lado da comprovação da existência de novos gêneros, novas formas de união, as quais não conseguiam obter a devida oficialização jurídica, posto que a lei havia sido teoricamente clara e, assim como qualquer ato legislativo, não havia previsto as novas demandas sociais posteriores a ela. Conclui-se, à luz do exposto, que alterações na realidade converteram o referido art. 226, § 3º, em algo que não se adapta a todos os quadros, de tal modo que conflitos entre a realidade e o previsto legalmente foram engendrados.

Tendo como base essa perspectiva, foram levantados debates contraditórios quanto à atuação do Judiciário nos casos em que os conflitos fossem reificados. Porém, é importante mencionar o fato de que as demandas dos casais não incluídos na prescrição dos artigos anteriormente mencionados (da Constituição Federal de do Código Civil) são pleitos que existem no momento presente e, portanto, não devem aguardar por uma provável alteração legislativa que venha a reconhecer um maior rol de possibilidades de união. Modificações em dispositivos legislativos não são realizadas de modo imediato ou facilitado; demandam certo tempo que não pode ser desperdiçado por aqueles que anseiam por amar, ainda mais considerando o fato de que nem todos (mais especificamente os defensores da interpretação excludente do artigo 226) se beneficiariam com a alteração, podendo, inclusive, dificultá-la.

Ademais, o espaço moral dos possíveis não é apenas utilizado no quadro por aqueles que pleiteiam uma expansão do Direito à união homoafetiva; ele é manejado até mesmo por aqueles que são contrários à expansão e esse manejo ocorre a partir da racionalização de alguns dos seus elementos para o espaço jurídico dos possíveis. Isso porque muitos que integram o último grupo (contrário à mudança) agem a partir de fatores morais e individuais, tal como a ideia de que desvios à cultura heteronormativa deveriam ser inadmissíveis – algo que é avalizado pelo espaço religioso dos possíveis. Por ser notório, nota-se que o âmbito moral e político possui uma ampla influência no quadro, sendo racionalizado para a esfera jurídica pelos defensores da medida e pelos contrários a ela.

 No que diz respeito aos defensores, preceitos do campo político (tais como a própria realidade) são somados a aspectos do campo jurídico (como o direito à dignidade e à integridade) e o resultado desta soma visa a promover dois importantes fatores: (i) universalização e (ii) neutralização do reconhecimento à união afetiva a partir da sua inserção oficial no ordenamento jurídico (seja por meio de uma alteração legislativa, ou pela atuação judicial, ou por ambas as formas). O ato de converter o reconhecimento em algo geral e oponível a todos torna-se ainda mais necessário, se analisado sob a perspectiva da tutelarização do Direito, mais especificamente a partir da expansão desse fenômeno para os demais indivíduos – considerando que a isonomia é um dos princípios regentes de todo a ordem constitucional brasileira. Por consequência, o ordenamento jurídico estaria à disposição para ser pleiteado e recorrido por todos (heterossexuais ou não) nos casos em que isso for indispensável.

A partir dos efeitos obtidos por meio do reconhecimento das uniões homoafetivas, ter-se-ia o fenômeno intitulado por Pierre Bourdieu de historicização da norma (no caso em análise, do supracitado artigo constitucional), expressa precisamente pela retirada desta do seu contexto original, trazendo-a para o presente e promovendo para tal transposição as adaptações necessárias – como uma interpretação expansiva do texto legislativo em razão das atuais demandas e limites do inaceitável. Diante disso, infere-se que a expansão da área de incidência do artigo em pauta não configura o fenômeno de antecipação de demandas, haja vista que, neste caso, as forças impulsionadoras do direito de reconhecimento à união homoafetiva são justamente pretéritas a ela, isto é, não se trata de uma presunção por parte dos juristas em prol de expansão da dignidade humana.

O ato de reconhecer e ratificar a união homoafetiva deve ser considerado como o que é: a devida atuação judiciária em nome da preservação dos direitos reconhecidos constitucionalmente. Assim como mencionado anteriormente, os avanços e as novas demandas sociais (em especial, as relativas ao quadro das sexualidades) são aspectos responsáveis por tornar a realidade atual distinta do contexto no qual os artigos anteriormente mencionados entraram em vigor e, diante de uma inércia legislativa em termos de propensão a não alteração dos dispositivos jurídicos, devem ser observados pelos juristas, a fim de que a ausência de palavras na lei, neste caso em específico, não provoque um sufocamento democrático. Claramente, considerando a busca pela preservação da harmonia entre os Poderes, não cabe apenas ao Judiciário e à sua interpretação o dever de proteção da integridade da pessoa humana; no entanto, a atuação por parte dele pode ser o estímulo necessário para uma retificação no próprio ordenamento por parte do Legislativo, no que tange ao quadro das uniões afetivas. O ponto fundamental é o seguinte: os casais homoafetivos não merecem esperar pelo legislador cordial realizar as alterações; enquanto elas não serem feitas de fato, o jurista deve realizar a sua defesa dos direitos constitucionais (dentre os quais estão o direito à integridade, a não descriminação e ao reconhecimento de uniões). Assim, não há interferências ou abusos no quadro da homeostase dos Poderes; há apenas um cenário no qual todos realizam as suas incumbências, contribuindo, assim, para a própria preservação democrática da sociedade.

Conclui-se, por fim, que o direito ao reconhecimento da união homoafetiva consiste em um meio de obtenção de diversos outros direitos. A partir dele, (i) a noção de magistratura do sujeito (enquanto meio de proteção) por parte do Direito é expandida para além das fronteiras da heteronormatividade, (ii) demandas atuais são contempladas, atualizando o ordenamento e tornando-o mais propenso à inclusão por adaptação, e (iii) ocorre a potencialização do regime democrático, tendo como base a noção de que ele depende diretamente das diferenças como forma de legitimação. Curioso é pensar na forma pela qual um direito reconhecido a uma parcela da sociedade é capaz de realizar alterações tão estruturais. Demandas surgem com o passar do tempo em um fluxo inevitável e, se prestarmos atenção, somos capazes de ouvir certos pilares antigos da sociedade ruindo. 

Mario Augusto Monteiro Filho