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sexta-feira, 5 de novembro de 2021

A judicialização do sistema de cotas raciais

      A ampliação dos direitos fundamentais e sua decorrente positivação nas constituições, o acesso à justiça e descrença na representação política ocasionaram o processo de judicialização na contemporaneidade. Esse fenômeno é compreendido como o deslocamento de assuntos antes concernentes ao Poder Legislativo ou Executivo para o campo de atuação do Judiciário. O autor Antoine Garapon identificou em França do século XX a perda dos laços tradicionais da sociedade os quais passaram a ser elaborados artificialmente pelo direito, assim, “o Direito transforma-se então na moral por ausência” (GARAPON, 1999, p. 152).

Bem como ocorreu em França, o Brasil pós-ditadura militar e a redemocratização possibilitara que o Poder Judiciário se atrofiasse e expandisse sua atuação para a concreção dos direitos que são garantidos na Constituição de 1988, visto que os indivíduos ao se verem desamparados pelo poder político recorrem à justiça como uma estratégia para sobreviver. Dessa maneira, a figura do juiz ganha posição de destaque a fim de solucionar as demandas sociais ao “(…) colocar-se no lugar da autoridade faltosa para autorizar uma intervenção nos assuntos particulares de um cidadão” (GARAPON, 1999, p. 150).

Tendo como fundamento a visão de Garapon sobre a atuação do Judiciário nos dias atuais, a ADPF 186/
DF
, que aborda sobre possível inconstitucionalidade do sistema de cotas raciais na Universidade de Brasília no ano de 2009, retrata com nitidez a apropriação do Supremo Tribunal Federal sobre matéria relativa aos outros poderes. De acordo com os arts. 3.º, III, IV, 205, 208, V do Texto Magno é assegurado o acesso à educação sem discriminação e delegado ao Estado o desenvolvimento de políticas capazes de expandir o ingresso nesse espaço, portanto, o sistema de cotas com critério étnico-racial inserido na UNB foi enquadrado como constitucional e o STF julgou a ação improcedente.

Com isso, as demandas sociais já não encontram no sistema político-partidário um meio para sanar seus litígios e recorrem ao protagonismo dos tribunais e juízes, os quais se viram impelidos a ampliarem seu campo de ação, transformando-se no último intérprete da Carta Magna e concretizando as decisões da esfera política, isto é, a vontade do legislador. O indivíduo contemporâneo desamparado busca a via jurídica para efetivar seus direitos fundamentais e a democracia.

Referências:

GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

BRASIL, Deilton Ribeiro. O deslocamento do eixo da democracia e o ativismo judicial: O guardador de promessas de Antoine Garapon. Disponível em : http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=5470abe68052c72a / Acesso : 05/11/2021

FILHO, José dos Santos Carvalho. Entre o guardião de promessas e o superego da sociedade: limites e possibilidades da jurisdição constitucional no Brasil. Ano 51 Número 202 . Brasília: Revista de Informação Legislativa. abr./jun. 2014. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/51/202/ril_v51_n202_p159.pdf / Acesso: 05/11/2021

[Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ConstituicaoConstituiçao. Acesso: 05/11/2021



Bruna Soares Teixeira
1º ano Direito - Noturno


Bienal de 2019 e o paradoxo do jurista na democracia

    Devido ao fato de expor obras contendo conteúdos homotransexualistas, a Bienal do Livro do Rio de Janeiro de 2019, foi alvo de uma tentativa de censura por meio do Mandado de Segurança número 0056881-31.2019.8.19.0000 do desembargador Heleno Ribeira Pereira Nunes, no qual previa que as obras que tratassem de tal tema e não estivessem lacradas e com advertências em relação ao seu conteúdo seriam recolhidas. Mesmo que tenha sido suspensa através de uma medida cautelar, o caso possui significância por representar a influência que decisões judiciais têm sobre o que é socialmente aceito, assim como também demonstra a crescente conscientização do indivíduo a respeito da legislação.

    A justificativa utilizada pelo desembargador supracitado para a tentativa de censura é que o conteúdo em questão seria prejudicial ao público jovem e infantil, sendo tal uma argumentação positivista da defesa dos vagamente definidos "bons costumes da família tradicional brasileira". Entretanto, mesmo que tenha sido barrada por ser um claro ataque ao direito à liberdade de expressão, a decisão de Pereira Nunes ainda cria entraves para a luta a favor da homotransexualidade, visto pode gerar pretexto para indivíduos intolerantes ou que defendem fanaticamente os "bons costumes", usando o posicionamento de um jurista como uma forma de permissão e precedente para perpetuar atos de homofobia ou transfobia. Esse comportamento também é previsto na obra do magistrado Antoine Garapon "O Juiz e a Democracia", na qual o pensador reflete que tal é resultado, decorrente do advento democrático, da diminuição das autoridades tradicionais, como a dos chefes de famílias, e da maior complexidade dos problemas jurídicos, tendo como consequência no caso brasileiro a transferência da figura de autoridade do patriarca para o juiz, com qualquer tentativa de legitimar um discurso sendo agora através da figura desse ao invés daquele. Paradoxalmente, no entanto, devido ao cerne da democracia ser a igualdade entre os indivíduos, a influência da figura do jurista também é enfraquecida, pois como todos são iguais, exercer o ofício do direito não torna alguém superior ao resto da população. Desse modo, o jurista não deveria ser tratado como uma entidade capaz de sozinha ditar o que é social e moralmente aceito, como no caso do conteúdo homotransafetivo da Bienal de 2019.

    Tendo em vista a igualdade entre os indivíduos prevista na democracia, não há verdadeiramente desvios comportamentais do padrão, pois conforme o entendimento do aludido pensador a respeito do regime democrático, não é possível deduzir os padrões morais a partir de um comportamento padronizado. Portanto, ao proclamar que o comportamento homotransafetivo é danoso à juventude, está ocorrendo a diminuição daqueles que exibem tal conduta e favorecendo a heteronormatividade, resultando em uma quebra do ideal democrático, pois o mesmo prevê que todos são iguais, independente de suas preferências amorosas. Por conseguinte, mesmo que a decisão do desembargador possa acarretar empecilhos para o movimentos como o LGBTQIA+, ela também demonstra a resistência contra semelhantes atos que violem direitos, visto que a decisão de Pereira Nunes foi contestada e não simples e inquestionavelmente aceita. Mesmo que a tentativa de censura tenha sido suspensa por ação de outros juristas, ainda é importante ressaltar as manifestações, seja nas redes sociais ou por outros meios, contrárias ao discurso do desembargador, com diversas levantando o ponto de que seria uma infração do sobredito direito, evidenciando dessa forma que o acesso às leis não é mais monopólio de uma elite, mas sim algo que a população pode acessar e tomar conhecimento de seus direitos, tornando, conforme previsto na obra de Garapon, "todos em juristas", sendo cada um capaz de definir por contra própria se o teor das obras problematizadas por Pereira Nunes.

Rafael Nascimento Feitosa, Direito Diurno